Uma informação assustadora não teve a repercussão merecida nos últimos dias na mídia brasileira. A informação é a de que uma área de mais de 5 mil quilômetros quadrados, envolvendo quatro municípios do Norte da Bahia e mais Petrolina, em Pernambuco, já tem clima de deserto.
As fontes são extremamente confiáveis: o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). As duas organizações analisaram dados desde 1960 e concluíram que até 2020 a área semi-árida no Brasil, na Região Nordeste e Norte de Minas Gerais, cresceu 220 mil quilômetros quadrados.
Dentro dessa expansão do semi-árido, uma área de 5.763 km2 passou a ter clima típico de deserto. Pela diminuição das chuvas e outros fatores ambientais.
A tímida repercussão desse fato gravíssimo é muito reveladora de como as questões socioambientais são tratadas na mídia – e o caso brasileiro não é exceção. Por sua vez, o que a mídia apresenta é reflexo do que a sociedade em geral experiencia e, nesse caso, o que ela está fazendo é espelhar uma distorção que ocorre no próprio âmbito das Nações Unidas.
O caso é que o tema da desertificação não está merecendo a mesma atenção, no âmbito internacional, do que outras duas questões de fato graves, a emergência climática global e a aceleração da perda da biodiversidade. Todos esses temas são tratados por Convenções específicas das Nações Unidas.
A Convenção das Mudanças Climáticas, a que mais tem merecido a atenção de governos, sociedade civil e empresas, trata da emergência climática, provocada pelo aumento médio das temperaturas terrestres, derivado da emissão de gases de efeito-estufa. Esses gases derivam em grande parte da queima de combustíveis fósseis, mas também são emitidos por exemplo pelo desmatamento, como no caso da Amazônia e do Cerrado no Brasil.
A rápida erosão da biodiversidade, por sua vez, é tratada pela Convenção da Diversidade Biológica. Os cientistas entendem que o planeta passa hoje pela sexta megaextinção de espécies.
Pois a questão da desertificação é tratada no âmbito da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação. Essas três Convenções são “filhas” da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992 e conhecida como Rio-92.
Foi fundamental, para a elaboração da Convenção para o Combate à Desertificação, um evento também realizado no Brasil, anterior à Rio-92. Foi a I Conferência Internacional sobre Impactos das Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-áridas, conhecida pela sigla ICID e realizada em Fortaleza, em janeiro de 1992.
Tive a oportunidade de, como repórter, cobrir tanto a ICID como a Rio-92. Desde então acompanho a evolução desses temas e a constatação é a de uma completa assimetria no tratamento deles, na própria ONU e em todos fóruns internacionais.
De fato o orçamento das Nações Unidas para a aplicação da Convenção para o Combate à Desertificação, por exemplo, é de pelo menos 70% inferior ao destinado à Convenção das Mudanças Climáticas e 50% menor do que o destinado à Convenção da Diversidade Biológica. Em termos da atenção da mídia e sociedade em geral, a disparidade é muito maior.
A recente Conferência das Partes (COP-28) da Convenção das Mudanças Climáticas, realizada em Dubai, levou milhares de jornalistas, ambientalistas, lobistas das empresas de combustíveis fósseis e cientistas para os Emirados Árabes Unidos, sem falar, é claro, dos governantes e representantes diplomáticos. A mesma presença de público e atenção nunca foi dada às COPs da Convenção da Diversidade Biológica e, muito menos, às da Convenção para o Combate à Desertificação.
Uma possível explicação pode ser o fato de que as áreas semi-áridas e desérticas estão localizadas em sua grande parte em países pobres ou em desenvolvimento, na África, Ásia e, também, no Brasil, como no semi-árido nordestino/mineiro. Mais da metade da população mundial em situação de pobreza vive nesses territórios.
O caso verificado no Norte da Bahia e sul de Pernambuco indica que essa situação de (muito) menor atenção para os processos de desertificação precisa mudar, e com urgência. Os cientistas do INPE e Cemaden calculam que, mantido o ritmo atual, em poucos anos a área com clima de deserto no Brasil pode triplicar.
Claro, as mudanças climáticas agravam os processos de desertificação. Entretanto, outros fatores também contribuem para a desertificação. O uso inadequado das terras, por exemplo. A concentração da posse da terra é outro fator a ser considerado.
Tomara que o alerta do INPE e Cemaden tenha resultado. De qualquer modo, será com muito atraso.
As primeiras advertências sobre indícios de desertificação na Região Nordeste foram feitas em 1949, pelo agrônomo José Guimarães Duque, no livro “Solo e Água no Polígono das Secas”.
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José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: josepmartins21@gmail.com