Há manhãs em que levantar da cama não é apenas difícil: é insuportável. O corpo parece carregar um peso invisível, uma gravidade que não se explica pela física, mas pela alma. A depressão silenciosa é talvez um dos sintomas mais devastadores do nosso tempo, porque se mascara de normalidade. O sujeito cumpre seus papéis, executa suas funções, conversa quando necessário, mas por dentro carrega um cansaço do existir que não se vê a olho nu.
Não há gritos, não há desespero aparente. Há silêncio. Um silêncio pesado que se instala na alma e corrói lentamente o sentido das coisas. Essa é a pauta que eu trouxe, penso inclusive que se faz necessária ser discutida, pois infelizmente é atual e real. Posso contar com sua companhia nessa reflexão meu caro leitor, minha caríssima leitora? Fico feliz, bom, então vamos lá.
Freud identificava na melancolia uma espécie de ferida narcísica: o sujeito se identifica com um objeto perdido e, em vez de dirigir a raiva para fora, volta-a contra si mesmo. O eu se torna palco de uma batalha surda, um tribunal que acusa e condena sem cessar. A depressão silenciosa pode ser lida nesse registro: uma perda não simbolizada, um luto não concluído, que se transforma em ressentimento contra o próprio eu.
Lacan, ao desenvolver a noção de objeto nos lembra que sempre há algo que escapa, uma falta estrutural. O depressivo, talvez, seja aquele que não consegue sustentar a falta como condição de existir e, diante dela, sente-se paralisado, como se nada tivesse valor.
Na filosofia, Pascal já falava do “tédio mortal” que habita o homem quando privado de distrações. Para ele, o ser humano não suporta estar consigo mesmo. Daí a necessidade de jogos, guerras, conversas, qualquer coisa que desvie a mente do vazio interior. A depressão silenciosa poderia ser vista como o momento em que nem as distrações funcionam mais: o sujeito perde o gosto até mesmo por fugir de si. Kierkegaard, por sua vez, descreveu a melancolia como o desespero de não querer ser si mesmo. É como se o indivíduo rejeitasse a própria existência, incapaz de reconciliar-se com sua liberdade e responsabilidade.
Nietzsche talvez dissesse que a depressão é a versão moderna do niilismo: o colapso de valores que deixa o sujeito sem chão, sem perspectiva. “Deus está morto”, ele anunciava, mas o que resta a um ser humano que não consegue criar novos valores para habitar esse vazio? Camus retomaria essa questão ao falar do absurdo: a vida não tem um sentido dado, mas cabe a nós inventá-lo. No entanto, ao depressivo, essa tarefa parece impossível. Inventar é um esforço, e esforço é justamente o que lhe falta.
A filosofia da mente poderia descrever a depressão como uma alteração profunda na experiência da consciência. Não se trata apenas de um estado de humor, mas de uma mudança na maneira como o mundo aparece ao sujeito. Tudo perde cor, brilho, intensidade.
Merleau-Ponty diria que o corpo, enquanto veículo do ser-no-mundo, já não encontra ressonância nas coisas. O depressivo olha o mundo, mas o mundo não responde. É uma suspensão da reciprocidade entre sujeito e realidade. Wittgenstein, que desconfiava dos limites da linguagem, talvez acrescentasse: a depressão é também o colapso da linguagem interna, a impossibilidade de narrar a si mesmo de modo que faça sentido.
Jung, com sua ideia de individuação, sugeriria que a depressão pode ser um chamado da psique para olhar para dentro, um convite da sombra a ser reconhecida. O problema é que o sujeito depressivo, em vez de escutar esse chamado, muitas vezes apenas sente o peso sem compreender seu significado.
Freud falava do trabalho do luto como necessário para transformar a dor em palavra. Na depressão, esse trabalho falha: a dor permanece muda, repetindo-se em silêncio.
A sociedade, por sua vez, pouco compreende o silêncio da depressão. Vivemos na era da performance, do sorriso constante, do “tudo bem” automático. Aquele que não corresponde a esse script é rapidamente marginalizado, tratado como fraco, preguiçoso ou incapaz de lidar com a vida. Foucault diria que o discurso psiquiátrico e médico se apropria desses sujeitos, classificando-os, etiquetando-os, tornando-os objeto de controle. Mas a psicanálise insiste: não se trata de uma doença a ser corrigida, mas de um sintoma a ser escutado. O silêncio da depressão fala, ainda que sem palavras.
A questão que nos inquieta é se a depressão silenciosa não seria também um espelho da sociedade em que vivemos. Se, como apontava Adorno, a modernidade produz indivíduos danificados, incapazes de experienciar a vida em sua plenitude, talvez o depressivo seja o sintoma mais honesto dessa condição. Ele não consegue mais sustentar a farsa da felicidade obrigatória. Seu corpo, sua alma, dizem não. E esse não é insuportável para a sociedade do sim, do sempre mais, do “vai dar certo”.
No fundo, a depressão silenciosa nos obriga a encarar a seguinte provocação: e se o problema não estivesse apenas no indivíduo, mas na cultura que o cerca? E se o peso invisível das manhãs fosse, na verdade, o peso de uma vida que perdeu o vínculo com o desejo autêntico, que se afogou em demandas externas e se esqueceu de si? Será que suportar esse silêncio não seria, paradoxalmente, o primeiro passo para escutar algo novo? Ou preferimos continuar correndo atrás de distrações, anestesiando a dor, sem jamais perguntar o que ela tem a nos dizer?
Thiago Pontes Thiago Pontes é Filósofo, Psicanalista e Neurolinguísta (PNL). Instagram @dr_thiagopontes_psicanalista – site: www.drthiagopontespsicanalista.com.br