Foi na década de 1890, no fim do século XIX, que o blues floresceu nas plantações de algodão do estado do Mississippi, na região sul dos Estados Unidos, através de cânticos religiosos entoados pelos trabalhadores negros, no período pós-Guerra Civil Americana, que teve como resultado a abolição da escravidão no país.
Moldado a partir do advento da guitarra elétrica, pelas mãos de lendários músicos afro-americanos como Robert Johnson, Muddy Waters e B.B. King, todos nascidos no Mississippi, o blues se desenvolveu ao longo da primeira metade do século XX e influenciou o surgimento de outros estilos musicais, como o jazz e o rock and roll, este último nos anos 1950, no contexto pós-Segunda Guerra Mundial.

Mas foi só 100 anos depois de suas primeiras manifestações nos Estados Unidos que o blues ganhou o seu primeiro reduto no interior de São Paulo, mais especificamente na cidade de Campinas, a mais de sete mil quilômetros de Jackson, capital do Mississippi, considerada o berço desse importante e influente gênero musical que se espalhou pelo mundo, com estilo bastante rítmico, grandes entregas vocais, letras simples e guitarra sempre presente.
Foi numa quinta-feira, dia 4 de junho de 1992, que o Delta Blues Bar abriu suas portas pela primeira vez para se tornar um espaço pioneiro e icônico na cena musical campineira, unindo diversos artistas locais a importantes figuras da música brasileira e até internacional. O antigo local, que desperta saudades até hoje, funcionou durante duas décadas, entre 1992 e 2013, no mesmo ponto onde hoje funciona o bar Jimmy Rocker, na Avenida Andrade Neves, número 2.042, no bairro Castelo.
“Fomos o primeiro bar temático de blues e rock em Campinas e no interior de São Paulo”, orgulha-se Lima Cruz, um dos fundadores do antigo Delta Blues Bar, que funcionou durante 20 anos na Avenida Andrade Neves, no bairro Castelo.
Tudo começou de forma despretensiosa, a partir de uma conversa entre amigos durante uma viagem de verão ao Guarujá, no litoral paulista. “Eu tinha acabado de sair de uma multinacional e viajei para a Praia da Enseada, no Carnaval de 1992, junto com mais dois amigos, o Johnny [Adriani] e o Tommy [Wu]. Lá, o Tommy comentou que estava com uma pizzaria no Castelo, mas não estava dando certo, então resolvemos montar um bar de blues no lugar, já que nós três tínhamos em comum o gosto pelo blues”, explicou José Lima Cruz, um dos antigos sócios do Delta Blues, em contato com a reportagem do Hora Campinas.
Bastaram apenas seis meses para o inovador projeto do trio sair do papel e ganhar vida, com o nome de Delta Blues Bar, em referência ao Delta do Mississippi, região onde se originou o blues, na região sul dos Estados Unidos. “O que a gente trouxe de novidade na época para Campinas foi a proposta de bar temático, uma moda que estava muito forte em Nova York e começou a respingar em São Paulo”, contextualiza Lima.
“Composto de vários ambientes (são cinco salas com temas específicos, como por exemplo, a sala dos grandes guitarristas), o bar funciona de quarta a segunda-feira, com música ao vivo três vezes por semana. No cardápio, bebidas e sanduíches batizados com nomes de astros tanto da música, quanto do cinema, por exemplo, Nat King Cole, que na linguagem do Delta Blues significa meia cerveja”, divulgou o Correio Popular, em matéria de 1992, sobre o então recém-inaugurado bar no Castelo.
“A ideia surgiu de uma brincadeira entre amigos aficionados em blues, e acabou virando coisa séria há um mês, com a inauguração, em Campinas, do primeiro bar da cidade dedicado ao blues. Com uma decoração que faz lembrar as casas noturnas do sul dos Estados Unidos, o Delta Blues Bar tem como objetivo, além de se tornar o ponto de encontro dos ‘bluseiros’ da cidade, divulgar ainda mais esse gênero musical surgido no final do século passado entre os negros norte-americanos, que a cada dia ganha mais admiradores no Brasil”, descreveu matéria do jornal Correio Popular, publicada no sábado, 4 de julho de 1992, Dia da Independência dos Estados Unidos, exatamente um mês após a inauguração do Delta Blues Bar em Campinas.
“Além de abrir espaço para o blues, o Delta Blues Bar também abre suas portas para dois gêneros musicais surgidos no sul do Estados Unidos: o country e o rockabilly”, acrescentou a matéria do Correio Popular, com texto da repórter Lalá Ruiz, sobre o então recém-inaugurado bar campineiro.

“O gerente do bar, José Lima, conta que em seu primeiro mês de funcionamento, a receptividade do público tem sido muito boa. ‘Em Campinas, não se falava em blues até uns cinco anos atrás, quando grupos como Blues Etílicos, André Christovam e Celso Blues Boys começaram a se apresentar por aqui. Foi aí que as pessoas começaram a se ligar’, diz. E talvez um ‘presságio’ de longa vida para o Delta Blues seja o fato de, em sua primeira semana de funcionamento, ele ter recebido a visita dos integrantes do Blues Etílicos. O grupo, que na época se apresentava na cidade, não apenas tomou algumas cervejas no bar como também fez uma jam session com os músicos da casa”, revelou a reportagem do Correio.

Uma das principais referências nacionais do gênero, o grupo Blues Etílicos apareceu pela primeira vez no Delta Blues no dia 13 de junho de 1992, batizando oficialmente o bar em seu segundo sábado de existência. Nome mais apropriado, impossível. “Eles estavam tocando no Centro de Convivência, num festival de blues patrocinado pela cervejaria Antarctica, e um dos produtores desse evento era nosso amigo. Ele comentou sobre o novo bar com o pessoal da banda, que quis conhecer”, recorda-se Lima Cruz.
A partir dessa primeira visita regada a muita cerveja e blues, o Blues Etílicos virou atração fixa na programação anual da casa. “Eles viraram sócios do Delta e vinham tocar no bar uma ou duas vezes por ano. Olha que honra”, lisonjeia-se Lima, sobre a relação de parceria construída com a banda formada no Rio de Janeiro, em 1985, pelo gaitista Flávio Guimarães, o baixista Cláudio Bedran e o guitarrista Otávio Rocha. Pouco tempo depois, foi incorporado o cantor e guitarrista norte-americano Greg Wilson, natural do Mississippi, que morreu há seis meses, no dia 21 de janeiro de 2024.
Publicada com o título “Delta Blues incentiva formação de bandas“, a reportagem do Correio Popular terminou com depoimento de um integrante do verdadeiro grupo que estreou o palco do bar: “Para o guitarrista e vocalista da banda Mississipi Breakers, Maurício Viotto Junior, a abertura do Delta Blues Bar está incentivando o surgimento de grupos de blues em Campinas. Sua banda, por exemplo, foi formada em função do bar (foi ela que inaugurou os shows ao vivo da casa), e outros grupos já conhecidos em Campinas, como O Bando (a atração de hoje no local), estão mudando seu repertório para se adequarem ao espaço. Mas ele vai mais além, e acalenta o sonho de que um dia Campinas será a capital brasileira do blues”. Dito e feito!

A partir do surgimento do Delta Blues, Campinas se tornou rota obrigatória para qualquer banda e artista de blues que se prezasse, não apenas da cidade e da região, como de todo o Brasil. “Da cena do blues nacional da época, o único que não tocou no Delta foi o Celso Blues Boy”, lamenta Lima Cruz. Mas ele garante que não foi por falta de tentativa. “Chegamos a marcar data quatro vezes, inclusive numa delas distribuímos mais de 300 cartazes pela cidade com o anúncio do show, mas quatro dias antes ele cancelou”, relembra Lima, sobre os desencontros com o lendário guitarrista que começou a carreira acompanhando o grande ícone Raul Seixas e também chegou a tocar com B. B. King, o “Rei do Blues”. Celso Blues Boy faleceu em 2012.
Um dos grandes ícones dos tempos de Delta Blues foi o músico e produtor cultural Cabeto Rocker Pascolato, ex-vocalista d’O Bando. “O Cabeto foi um cara muito importante na vida cultural de Campinas, não só na música, mas também no teatro”, atesta Lima Cruz, que tinha grande amizade com o artista, falecido há cinco anos, em agosto de 2019, vítima de febre maculosa.
Naquele inesquecível sábado, dia 4 de julho de 1992, aniversário de um mês do bar, o histórico grupo campineiro O Bando apresentou-se pela primeira vez no Delta Blues e, a partir de então, tornou-se a banda mais emblemática da história do bar. Foram inúmeros shows memoráveis protagonizados pela banda à época formada pelo vocalista Cabeto Rocker, seu irmão guitarrista Giba Pascolato, o baixista Joni Leite e o baterista Sezão Nigazz. No Delta, O Bando chegou a dividir palco com nomes importantes do blues nacional e internacional, entre eles o grupo Blues Etílicos, o cantor carioca Serguei e o norte-americano J.J. Jackson.

“Foi um momento muito legal de Campinas, com bandas locais e autorais que fizeram muito sucesso: O Bando, Kretynos, Quatro Fatos, Big Muff, Kamasutra, Rei Lagarto… Todas elas lotavam o Delta”, lista Lima Cruz, tentando não se esquecer de ninguém.
Naquele momento efervescente da cena musical campineira, o Delta Blues não era o único bar que dava espaço para grupos que despontavam na cidade. “O Ilustrada foi o lugar que abriu as portas para bares com som ao vivo em Campinas. Eu frequentei lá quando moleque, aos 15, 16 anos. O Camilo [Chagas] foi um cara fantástico, com uma grande visão de música, desde samba até punk rock. O Ilustrada, então, é o ‘avô’ do Delta Blues. Foi nosso guia e ponto de partida”, define Lima, sobre o antigo Bar Ilustrada, que surgiu nos anos 80 e durou até 1995, na boêmia região conhecida como “Setor”, no bairro Cambuí.
Ouça abaixo depoimento de Joni Leite, ex-baixista d’O Bando, sobre o primeiro show da banda no Delta Blues, no dia 4 de julho de 1992:
Ouça abaixo depoimento de Joni Leite sobre a apresentação d’O Bando em conjunto com o Blues Etílicos no Delta Blues, no dia 25 de junho de 1995:
Foi através d’O Bando e da amizade com Cabeto Rocker que a jovem Sabrina Parlatore começou a frequentar o Delta Blues, ainda antes de ganhar projeção nacional como VJ da MTV Brasil, trabalho que marcou seu início de carreira como apresentadora de televisão, em 1995. Na época, ela morava e estudava em Campinas, em paralelo ao trabalho de modelo que desempenhava no Japão, em viagens realizadas durante as férias escolares.
“Antes da Sabrina entrar para a MTV, nós já éramos amigos. Eu a conheci através do Cabeto. Ela tinha acabado de voltar do Japão, estava lá no bar e pediu para a gente acompanhá-la no dia do teste numa segunda-feira lá em São Paulo, pois não queria ir sozinha. Depois disso, ela continuou próxima da gente e começou a trazer a galera da MTV para o Delta”, lembra Lima Cruz.

Além de Sabrina Parlatore, vários outros VJs da MTV visitaram o Delta Blues, entre eles Astrid Fontenelle, Gastão Moreira e o campineiro Edgard Piccoli. Alguns, inclusive, até chegaram a tocar no bar campineiro, como Kid Vinil (com sua banda Verminose) e Luiz Thunderbird (com seu grupo Devotos de Nossa Senhora Aparecida).
Ouça abaixo depoimento da cantora e apresentadora Sabrina Parlatore, ex-VJ da MTV Brasil, sobre os tempos em que ela frequentava o Delta Blues, durante a juventude em Campinas:
Outros importantes personagens da música brasileira, como Nasi e Frejat, também deixaram suas marcas no palco do Delta Blues. Mais conhecido pelo trabalho como vocalista do Ira!, um dos principais expoentes da geração dourada do rock brasileiro nos anos 80, o cantor paulistano Nasi se apresentou algumas vezes no icônico bar campineiro com sua banda “Nasi & Os Irmãos do Blues”, projeto paralelo que desenvolveu nos anos 90, para alocar sua paixão pelo blues.

Já o cantor e guitarrista carioca Roberto Frejat deu as caras no Delta Blues em 2001, quando iniciava carreira solo em paralelo ao trabalho com o Barão Vermelho, uma das bandas de maior sucesso do rock brasileiro, também surgida nos anos 80. “O Frejat estava tocando na Festa da Uva, em Vinhedo. A produtora era minha amiga e comentou sobre o Delta com ele, que é um apaixonado por blues e quis conhecer o bar. Quando ele chegou, apresentei o espaço e depois ele pediu para dar uma canja no palco. Ele tocou três músicas junto com o Ted Netuno e os Rabos de Peixe, no segundo set da banda, que estava se apresentando naquela noite”, relembra Lima Cruz.

Além do pioneirismo em introduzir o som típico do Mississippi na cena musical de Campinas, o Delta Blues também foi precursor em abrir espaço para o estilo musical que inaugurou a onda do rock, em meados anos 50.
“O rockabilly não tinha tanto espaço nem visibilidade em Campinas, mas a cidade tinha várias bandas desse estilo, como Drive-In e Ted Netuno e os Rabos de Peixe, então demos espaço para elas e também trouxemos outras de fora, como Acústicos & Valvulados e Os Rebeldes. O Eddy Teddy, um dos pioneiros do rockabilly no Brasil, também tocou no Delta com sua banda Coke Luxe”, cita Lima Cruz.
“O auge do Delta Blues foi entre 1996 e 2000. Nesse período, o bar lotava e ficamos conhecidos no Brasil inteiro entre os músicos de blues e rock”, aponta Lima Cruz.
“Nossa capacidade máxima era de 200 pessoas, mas já tivemos noites com 350 e até 400 pessoas, com rodízio de público, entrando e saindo gente. A gente abria às sete horas da noite e só fechava às sete da manhã, então as pessoas iam se revezando. Naquela época, os bares ficavam com a porta aberta a madrugada inteira”, explica Lima.
“Nós fomos o primeiro bar de Campinas com televisão para rodar vídeos e também inauguramos gratuidade para mulheres às quintas-feiras. Além disso, os músicos que tocavam no Delta não pagavam couvert quando vinham ao bar como clientes e ainda tinham direito a dar canjas”, afirma. “Também fomos o primeiro lugar do interior de São Paulo a promover um encontro de gaitistas do Brasil inteiro. Trouxemos os 10 principais gaitistas do país para uma noite especial lá no Delta Blues”, relembra Lima Cruz.
“No auge do sertanejo, trouxemos bandas de blues de Goiânia e do Mato Grosso, entre elas O Bando do Velho Jack. E no auge da Timbalada, trouxemos da Bahia uma banda de psychobilly e rockabilly”, comenta Lima Cruz.
O Delta Blues serviu de palco para dezenas de lançamentos de discos, não apenas de grupos locais, mas também de artistas consagrados. “Entre bandas e artistas, a gente lançou 135 CDs e 5 DVDs, como o ‘Fogo na Madeira’, do Made in Brazil, que foi gravado ao vivo no Delta. Também tenho muito orgulho de ter lançado um disco solo do Paulinho Guitarra, que é o responsável por todos os riffs de guitarra dos discos ‘racionais’ do Tim Maia. Lançamos todos os discos solo do Flávio Guimarães, dois do Nuno Mindelis, um do André Christovam e outro do Victor Biglione, além de quatro da banda Nasi & Os Irmãos do Blues”, orgulha-se Lima.

“Trouxemos seis atrações internacionais para o Delta Blues. Eu tinha uma parceria com o Bourbon Street, em São Paulo, então quando vinha alguém de fora para lá, eu tentava arrastar para cá”, comenta Lima, que conseguiu levar ao espaço campineiro figuras como o gaitista norte-americano “Madcat”.
“Outro cara que esteve no Delta e não posso deixar de comentar foi o Bocato, um dos melhores trompetistas de jazz do Brasil”, destaca Lima Cruz, que deixou o Delta Blues em 2005. O bar ainda permaneceu ativo até 2013, quando fechou as portas definitivamente. Em 2014, o espaço foi reaberto com o nome de Memphis Bar, mas durou menos de um ano. Em 2015, houve uma nova tentativa, desta vez bem-sucedida, sob o nome de Jimmy Rocker. Já são quase 10 anos de existência, mantendo acesa a chama do Delta Blues exatamente no mesmo espaço onde toda a rica história foi escrita.












