Em tempo de edições frenéticas, imagens fragmentadas e efeitos especiais, “Emily” (Reino Unido, 2022, drama, 2h10 min.), de Frances O’Connor, aposta na história pura e simples, no roteiro sem rodeios (tradicional, mas eficiente) e na carga dramática densa e aflitiva que seduz o espectador do começo ao fim.
E se faz necessário tal sedução porque o cenário é frio, não apenas na temperatura do local, mas, também, no sentido figurado.
Por isso, a cinematografia de Nanu Segal imprime de modo adequado, a maior parte do tempo, os tons escuros (mesmo nas cenas externas) e, diante de total ausência de sol, propicia a criação de um ambiente que, em vários momentos, flerta com o terror – na verdade, ele pode ser classificado como o chamado gênero gótico.
O exemplo está na cena em que, após o culto com o novo e jovem pastor da comunidade, William Weightm (Oliver Jackson-Cohen), uma brincadeira em que alguém usa máscara e os outros tentam adivinhar qual é o personagem, Emily Brontë (Emma Mackey) assume o papel da mãe morta. A cena permite à diretora criar uma das melhores sequências, utilizando-se de cortes precisos e rápidos e criativo uso da câmera, que se movimenta em ritmo acelerado misturando o drama ao terror.
Emily é uma personagem complexa.
Tida como “estranha” na comunidade e pela própria irmã, que vive fechada no próprio mundo, escreve poemas e começa a delinear a criação de um livro que se transformaria em canônico na literatura mundial (“O Morro dos Ventos Uivantes”) no qual usa a história familiar trágica como forma de extravasar sentimentos, emoções e o estranhamento em relação ao universo onde vive e do qual é vítima.
O roteiro tem a linhagem circular tradicional. Apresenta a personagem central e seu livro, traça longo flashback e retorna ao início a fim de costurar o desfecho. Estruturalmente, trata-se da história real da escritora que, no clássico literário, baseada nas experiências vividas pela protagonista, vira ficção e, portanto, literatura.
E o realismo de mundo onde chove o tempo todo e perdido no nada como indica o novo pastor na chegada à igreja, se desenrola sob a tragédia de amores proibidos, mortes, traições que envolvem o pároco e o irmão de Emily, Branwell (Fionn Whitehead) – o que configura um excesso em se tratando de comunidade pequena, que estaria mais propensa a ser local marcado pela monotonia e ausência de grandes acontecimentos.
A carga dramática que seduz, característica do filme definida no início do texto não quer dizer que ele seja fácil e divertido de assistir. De diversão, óbvio, não há nada. A “facilidade” poderá vir do espectador ligado aos gêneros (drama e terror gótico) ou àqueles que apreciam cinema bem construído, pensado e elaborado.
É desta forma que Frances O’Connor, atriz australiana de origem inglesa e, agora, também diretora, concebe o longa, uma vez que ela é, também, responsável pela escritura do roteiro. Porém, a culpa não é dela nem da obra reconhecida ao longo do tempo, mas da trama criada pela escritora (o livro foi lançado em 1847 e gerou controvertidas reações) nascida em meio à obscuridade.
Daí as cores esmaecidas e foscas, daí a trilha linda de Abel Korzeniowski; porém, triste e desalentada; daí as interpretações pesadas – quase não existem risos ou brilhos nos olhares dos personagens –, características que, claro, atendem à demanda da atmosfera criada pela autora.
Assim, não faltam qualidades ao filme, mas “Emily” ressente-se da ausência de luz. Prova disso é a reação desoladora da irmã Charlotte Brontë (Alexandra Dowling) ao ler o livro. Perceba-se a tentativa de encontrar algo que o filme não tem e nem poderia ter porque, do contrário, trairia o propósito dele. Mas, como espectador, uma luz, ainda pequena, lhe cairia muito bem.
O filme está em cartaz nas redes Cinépolis do Galleria Shopping e no Cinemark do Iguatemi Shopping
João Nunes é jornalista e crítico de cinema