Em Campinas somos uma metrópole e a educação pública é ofertada em grande proporção no nível da educação infantil, conforme prescrevem as leis. As crianças, a partir dos quatro anos, devem obrigatoriamente estar nas escolas infantis, sendo opcional para as famílias matriculá-las antes dessa idade.
Para isso, no município, crianças de todos os bairros e classes sociais são atendidas em escolas públicas ou particulares, e em instituições que se legitimam por políticas híbridas através de parceria público-privado. Mediante convênios firmados em contratos há também instituições filantrópicas ou confessionais, laicas ou não, algumas com raízes que remontam ao modelo assistencial, o que compõe um mosaico de escolas que visam atender a um direito constitucional de cidadania desde a infância.
Matricular a criança na escola infantil não requer nenhuma exigência, como já vimos no passado, de comprovante de que a mãe “trabalha fora”. É direito da criança e pronto!
O alcance desse direito amplia as possibilidades dessa mãe trabalhar e ter independência econômica de quem quer que seja, numa cultura ainda calcada em moldes tradicionais na qual quem cuida dos filhos desde o nascimento é a mãe, e a atuação do pai é vista como “ajuda”.
Mulheres estão habituadas a acumular funções do trabalho profissional e do trabalho doméstico, atravessados ou não por estudo e/ou maternidade. Mulheres em posições de elite podem pagar para outras mulheres realizarem o trabalho doméstico e os cuidados com a maternagem de seus filhos, enquanto as mulheres trabalhadoras cuidam da casa e dos filhos dos outros, e também de sua própria casa e filhos, com a ajuda dos serviços públicos e das redes de apoio.
Nesse cenário social e cultural, que vem mudando lentamente com os movimentos que discutem relações de gênero e pautas por igualdade, tem acontecido um fenômeno: nas creches públicas, cada vez mais homens têm ingressado por concurso para trabalharem como agentes educativos que auxiliam professores na educação infantil.
A sociedade tem pouco conhecimento sobre a inserção desses profissionais e as barreiras que enfrentam na aceitação local, levantadas por seguimentos incomodados com a presença masculina na creche. Quais são os motivos das suspeitas levantadas contra esses trabalhadores?
O pressuposto básico da educação infantil é o cuidar e o educar. Portanto, as crianças vivenciam uma rotina de atividades educativas, lúdicas, de interação e afetividade intrínsecas e necessárias ao seu desenvolvimento. E em seu cotidiano são cuidadas no que diz respeito à alimentação, higiene, sono e em todos os aspectos do brincar.
As crianças, sendo pequenas, são dependentes e autônomas ao mesmo tempo em relação ao adulto. Elas sabem se expressar e precisam ser encorajadas e estimuladas na realização de ações de natureza física, cognitiva, social e emocional. Nessa vivência o toque físico ocorre o tempo todo, o que gera resistência por parte de alguns pais e mães diante do profissional homem, “não autorizado” a exercer essa função por representar uma ameaça.
Homens rompem paradigmas quando ingressam no trabalho em creches públicas e nos desafiam a refletir sobre nossos valores. Num primeiro momento pensamos que estão em busca de estabilidade no emprego, benefícios trabalhistas, dentre outros.
É preciso ouvir esses profissionais para compreendermos como se sentem, de que modo interagem com as crianças, quais as repercussões de sua presença ativa em relação às demais profissionais mulheres, como se sentem em relação às crianças nas interações do cotidiano da creche e em relação às famílias?
Esse fenômeno precisa ser observado e analisado através de levantamento de dados e pesquisas que decifrem os desafios dessa nova realidade.
Sabemos que a creche educa as crianças e também as famílias. Nesse sentido, quais são os protocolos necessários para proteger esses profissionais para que não sofram violência de gênero, por serem homens que estão ousando trabalhar num lugar que “não foi feito para eles?”.
Muitos têm sido os relatos de agressões sofridas por profissionais homens na creche, com acusações de cunho sexual, geralmente impulsionadas por sentimentos de medo e repulsa à presença masculina nesse ambiente.
É hora da sociedade debater sobre essas mudanças culturais: a educação infantil não pode ser lugar de homem?
Banir o homem da creche, como profissional, não contribui para a superação da cultura do estupro e da misoginia. Ao contrário, pode reafirmá-la, ao percebermos o próprio machismo maltratando esses funcionários quando são hostilizados.
Precisamos lutar contra a ignorância que cerceia a liberdade de escolha, para homens e mulheres, e que o impedimento da atuação profissional do homem na creche não seja seguido como um mandamento.
Que a sensibilidade e a afetividade também sejam reconhecidas na masculinidade, o que já temos aprendido quando observamos as interações das crianças com esses profissionais.
Eliana Nunes da Silva, pedagoga, é doutora em Educação pela Unicamp e supervisora educacional na Secretaria Municipal de Educação de Campinas – eli.nunes@uol.com.br