No dia 14 de julho, Campinas comemora o aniversário de 247 anos em um contexto único. Foi um ano marcado pela luta contra a Covid-19, em que o município sofreu e ainda sofre com uma das maiores crises sanitárias da história. Por outro lado, agora chegou o momento da esperança e da felicidade pelo avanço da vacinação. E nessas duas situações há o envolvimento dos profissionais da saúde. Sempre ao lado da ciência, eles foram e continuam sendo verdadeiros heróis para salvar vidas.
Andrea Cristina da Costa, de 48 anos, é enfermeira há mais de duas décadas e desde o início da pandemia esteve na linha de frente no embate contra o coronavírus. Primeiramente trabalhando no Hospital Ouro Verde, em Campinas, e há quase um mês na Santa Casa de Amparo, ela destaca o avanço na batalha contra o vírus e a importância de amar a profissão e a vida em momentos tão complicados.
“Comparado com o início da pandemia e o que passamos na segunda onda, eu considero que a situação melhorou muito. A gente está aí com a nossa previsão de conseguir vacinar toda a população até setembro e estamos conseguindo ver os nossos familiares sorrirem porque já estão sendo vacinados”, acredita. O maior legado que essa pandemia deixou, afirma ela, foi o amor ao próximo.
“Os meus colegas de trabalho ficaram muito preocupados um com outro, houve uma sensibilização para auxiliar o companheiro de trabalho, sempre um tentando ajudar o outro a ficar mais forte. Essa profissão da saúde é uma profissão de amor, de perseverança e a gente quer para o próximo o que a gente quer para a gente”, enaltece a enfermeira.
Há um ano e quatro meses, junto com a chegada da doença, teve início o desgaste físico e mental dos profissionais da saúde na luta contra o vírus.
Apesar do sentimento de alívio atualmente, Andrea atravessou momentos difíceis desde o início da pandemia. Ela relembra do medo, há um ano e quatro meses, na chegada da doença até então desconhecida, do cansaço físico e mental na luta contra o vírus e também das dificuldades com a lotação dos hospitais.
“A gente não conhecia a Covid e não sabia o que ela iria trazer para nós. Além do medo que a gente tinha de pegar a doença, levar a doença para casa e o medo mesmo de cuidar do paciente, no início também não conhecíamos o resultado do tratamento e não sabíamos como o paciente iria evoluir. Foram momentos de muito estresse, de toda a equipe da Saúde. Nós tivemos no início, inclusive, as pessoas que pediram demissão, porque tinha pai e mãe idosos em casa, e com medo de levar a doença para a família, acabaram se desligando. Nós tivemos a perda de bons profissionais. Quem ficou trabalhando, ficou sobrecarregado, não só de trabalho e carga horária, mas também de psicológico”, declara.
“Nós tivemos a perda de bons profissionais. Quem ficou trabalhando, ficou sobrecarregado, não só de trabalho e carga horária, mas também de psicológico”, afirma Andréa Cristina da Costa
Com o passar do tempo, relembra, os profissionais da área médica foram conhecendo um pouco mais a doença, entendendo que o tratamento estava sendo eficaz. “Aí começamos a ter outros problemas, que era a lotação dos leitos. Os leitos começaram a ficar todos ocupados e cada momento nos trouxe um medo diferente”, relata Andrea sobre o maior desafio da sua carreira.
A enfermeira relembra também outro desafio que teve no início da pandemia, quando ficou quase dois meses longe do filho Marcelo Seiji Hirata, na época com 12 anos. Ela agradece o apoio da família nesse momento e relata a dificuldade de ficar tanto tempo distante de quem mais ama.
“Quando começou a pandemia, mandei meu filho para a casa da minha mãe de 65 anos e do meu pai que tem 75 anos. Eu não ia ver ele. Com a facilidade das ligações por vídeo e WhatsApp, a gente conversava todos os dias, mas ir até a casa deles, eu não ia, e eu não peguei meu filho por quase dois meses. Foi muito triste, porque a gente mudou totalmente a nossa vida. Para as crianças também foi complicado por não ter escola de forma presencial e ficar dentro de casa preso ao computador. Ele ficou longe da mãe, do pai e perdeu um pouco a referência”, explica.
Todos nós passamos por esse momento de transição e de afastamento de quem a gente mais ama, que é a família”, conta Andréa Cristina da Costa
“Então, assim, a gente sofre por deixar, mas ao mesmo tempo a gente deixa para não sofrer no futuro. Foi muito difícil e acho que nunca ninguém passou por isso. Assim como eu, muitos profissionais e médicos saíram da sua casa e foram para hotel, para não ter o risco de levar alguma coisa para casa. Todos nós passamos por esse momento de transição e de afastamento de quem a gente mais ama, que é a família”, pontua.
Início, vacinação e futuro
Carmino de Souza, médico hematologista e secretário de Saúde de Campinas entre 2013 e 2020, foi o responsável por decidir, em março do ano passado, quais seriam as primeiras medidas adotadas na cidade na luta contra o coronavírus. Responsável por pedir o cancelamento de todos os eventos no município dois dias depois da Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar pandemia, o professor titular da Unicamp relembra os primeiros passos na batalha contra a Covid-19.
“Eu tomei a decisão junto ao ex-prefeito (Jonas Donizette) de não deixar ter público no Dérbi que aconteceu no dia 16 de março de 2020. Foi uma enorme confusão porque aparentemente a cidade não tinha nada, ninguém tinha morrido e os casos eram raros, mas naquele final de semana do dia 13 de março, Campinas tinha uma série de atividades. Tinha uma apresentação da Orquestra Sinfônica, tinha a Corrida, tinha o Dérbi logo na segunda-feira e nós tivemos que suspender atividades esportivas e culturais na cidade. Foi duro, porque não havia ainda um regramento no país para fazer isso, a gente teve que fazer isso através de portarias porque não deu tempo de fazer um decreto”, relembra.
“Depois, na semana seguinte, uma série de ações jurídicas institucionais foi tomada, mas naquele final de semana a gente começou o processo de isolamento social, distanciamento social e houve uma grande adesão da população. A população estava muito assustada com o que via nas imagens de televisão, jornais e houve uma grande adesão. Muitos podem achar que nós queimamos a largada, pensando que talvez a gente tenha tomado medidas muito duras muito cedo. Eu discordo disso”, argumenta o médico.
Segundo ele, nesta epidemia é preciso tomar medidas antes de pensar que elas possam ser tomadas. “Em outras palavras, se eu esperar o momento de tomar a medida, ela já está atrasada porque esse coronavírus é extremamente transmissível. Quando você retarda, ou você pensa para tomar a medida, você já perdeu o momento de fazer. Quanto mais precocemente possível, quanto mais proativamente possível, melhor. Então, no começo, a população aderiu um pouco sem entender e isso foi fundamental para nós. Se a epidemia chegasse como chegou posteriormente no final de maio, início de junho, aí ela veio como uma avalanche. Então nós tivemos metade de março, abril e uma boa parte de maio para nos preparar.
Um ano e quatro meses depois do início da pandemia, Carmino enxerga que no momento o município ainda passa dificuldades na luta contra o coronavírus. Ele também relembra que outras doenças não desapareceram nesse período e isso representa mais um desafio para o sistema de saúde.
“É uma situação limítrofe que estamos vivendo. Ao lado do cuidado da pandemia, você também lida a essa altura com uma série de coisas que desorganizam o sistema de saúde. Não é possível você ficar um ano e meio só cuidando de Covid, porque as outras doenças vão explodir. Então você começa a ter descompensação diabética, descompensação de hipertensão arterial, cardíaca e você não pode descuidar do câncer, por exemplo”, avalia.
Carmino aponta que atualmente há dois sistemas de saúde vigentes. “Você tem um sistema para cuidar do coronavírus, para cada um doente com o Sars-Cov-2, você tem 8,5 ou 9 que tem o vírus e não sabe, ou tem quadros gripais muito leve. Então, esse é o grande problema. Os que estão doentes, vão ficar isolados. A situação é limítrofe, porque você tem ainda a Covid-19 muito alta, com número muito grande ocupando uma estrutura enorme da Secretaria Municipal de Saúde, da rede privada, da Unicamp, etc, mas você compete nisso”, lamenta.
“O doente com Covid não pode ficar na porta (do hospital), porque ele na porta cria uma enorme confusão, ele contamina, etc. Então, a prioridade dentro do sistema acaba sendo sempre colocar os doentes de Covid para dentro, seja para a UTI, ou para a enfermaria, algum leito de retaguarda. Os outros doentes, AVCs e partos, politrauma, continuam existindo e esses acabam ficando na porta porque você não tem onde colocar. Mesmo a gente tendo aumentado muito o número de leitos, você não consegue ter os dois sistemas aquecidos e necessitando de estrutura. Bom, no começo dá para represar um pouco, mas na medida em que o tempo vai passando, você vai perdendo a capacidade de represar outras doenças. Você tem que cuidar das outras pessoas”, enfatiza o ex-secretário da Saúde de Campinas e atualmente colunista do Hora Campinas.
“Os outros doentes, AVCs e partos, politrauma, continuam existindo e esses acabam ficando na porta porque você não tem onde colocar”, descreve Carmino de Souza
Apesar das dificuldades, Carmino elogia o avanço da vacinação, garante que o município estava preparado para iniciar a imunização no final do ano passado e afirma com convicção que o número de vacinados no município seria ainda maior se o Brasil tivesse um estoque maior de imunizantes.
“Nós estávamos preparados para o início da vacinação no final de 2020. Eu nunca entendi porque não fizemos uma via rápida para começar a vacinar. A crise sanitária era e é de tamanha gravidade que não cabem cientificismos ou esses purismos em relação à pesquisa clínica, que não completou isso, não completou aquilo. Nós tínhamos a possibilidade de vacinar e sabíamos que as vacinas eram seguras, independente do quanto elas eram eficazes. Nós tínhamos que ter vacinado, nós tínhamos que ter começado a vacinar dois, três meses antes do que nós começamos. E nós tínhamos essa possibilidade, porque o Butantan estava pronto. Talvez a Fiocruz ainda não, mas ela estava se preparando também”, destaca.
“Não poderia ter politizado a questão da vacina, isso foi muito ruim, porque acaba deixando a população confusa se toma a vacina ou não, ou se uma vacina é melhor que a outra. Não é, não tem nada. Elas têm plataformas diferentes, mas como produto final, ela tem os mesmos resultados, que é impedir ou reduzir a doença mais grave”. – dar destaque para esse trecho.
Nós tínhamos que ter vacinado, nós tínhamos que ter começado a vacinar dois, três meses antes do que nós começamos. E nós tínhamos essa possibilidade”, entende Carmino de Souza
“Com a disponibilidade de vacina, é impressionante o andamento da vacinação em Campinas. O processo de vacinação de Campinas, além de ser extremamente eficiente, ele é extremamente organizado. Você não ouviu provavelmente críticas ao processo de vacinação na cidade. Todo ele é agendado, informatizado e com horários. Eu estou dizendo pois eu me vacinei e a minha mulher se vacinou. Eu agora estou falando como cidadão e não como secretário, pois quando a vacinação começou, eu já não era mais secretário. A organização do município em relação a vacinação é ótima”, frisa.
“A gente tem capacidade, nós já mostramos nos Dias D, foram quatro Dias D, a gente chegou a vacinar quase 30 mil pessoas em um dia. Você imagina, 30 mil pessoas em um dia, uma cidade de 1,2 milhão de pessoas, se tivesse vacina, em um mês e meio vacinaria toda a população, inclusive as crianças. Se a gente tirar as crianças, em trinta dias, quarenta dias, vacinaria todo mundo. Campinas é uma cidade privilegiada pela sua estrutura, pelo seu compromisso, temos sorte de ter universidades e o serviço municipal funciona. A gente consegue fazer um enfrentamento com muito profissionalismo, mesmo sendo uma epidemia realmente dramática e muito grave, coisa que nós nunca vivemos”, declara.
Questionado sobre a projeção para Campinas, Carmino ressalta que o importante é sair da pandemia o mais rápido possível. Ele também afirma que acredita que novas epidemias podem surgir e a sociedade, não só no município, mas em todo o mundo, terá que estabelecer novas formas de conviver um com o outro.
“Para o futuro, eu acho que vamos continuar tendo outras epidemias pelo tipo de vida que nós assumimos. Todos nós vamos ter que estabelecer novas formas de vida, nós vamos ter que viver diferente, adotando cuidados de transmissão respiratória, uso de máscara quando você tiver doente e lavar as mãos. Lavar as mãos é uma das medidas mais salvadoras da medicina, independentemente do coronavírus. Qualquer modelo matemático que você faça para infecção hospitalar, você vai encontrar que lavar as mãos é o método mais eficiente pra diminuir transmissão de doença. Tomara que esses hábitos se cristalizem, que as pessoas adquiram esses hábitos de quando tiver com algum problema respiratório, usar máscara. Não precisa ficar isolado, eu nunca preconizei o isolamento, o que a gente preconizava é que as pessoas mantivessem algum distanciamento, mas isso é muito difícil de acontecer, porque temos dificuldades, como por exemplo o transporte público”, lamenta.
“Então, nós temos que estabelecer novos protocolos de convivência, garantindo que a transmissão possa ser menor, mas infelizmente nós somos muitos no mundo e resolvemos ter uma vida urbana em grande parte do mundo. Se a gente pegar o mundo inteiro, a população urbana e rural se divide em meio a meio, mas isso é no mundo inteiro. Se você pega alguns locais, aqui em Campinas, por exemplo, praticamente nós não temos zona rural. Campinas é uma cidade praticamente urbana, 96% da cidade é urbana. Então, os cuidados urbanos vão ter que ser tomados”, finaliza.