No mês de fevereiro, às vésperas do Carnaval, o presidente Jair Bolsonaro modificou quatro decretos federais com o objetivo de flexibilizar o acesso a armas de fogo e munições no Brasil. As alterações foram publicadas em edição extra do Diário Oficial da União, no dia 12 de fevereiro, e passam a vigorar a partir de 60 dias da sanção. As medidas regulamentam o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), mas o delegado Hamilton Caviola Filho, do 1º Distrito Policial de Campinas, contesta a resolução. “Não entendo que seja regulamentação, mas sim mudanças legislativas. O grande erro foi não ter submetido os decretos à apreciação da Casa Legislativa, onde poderiam ser mais discutidos e bem elaborados”, ressalta Caviola.
“O assunto está nebuloso e faltou um debate público, tanto é que alguns partidos se armaram e entraram no Supremo Tribunal Federal arguindo a inconstitucionalidade da medida”, destaca o delegado.
Após ação ajuizada pelo Partido Social Brasileiro (PSB), o julgamento do caso está paralisado e não tem previsão de retorno, uma vez que a ministra Rosa Weber pediu vista e o suspendeu no último dia 12 de março. Relator do processo, o ministro Edson Fachin havia sido o único a votar, mostrando-se contrário ao novo pacote de decretos, pois não entende que a liberação de armas seja benéfica ao combate de violência e criminalidade no país.
De acordo com a especialista em segurança pública e privada, a professora Susana Durão, do Departamento de Antropologia da Unicamp, Jair Bolsonaro opera simultaneamente em duas frentes, através de um pacto de liberalização progressiva de armas e munições pessoais.
“O presidente fomenta no país uma cultura da posse de arma individual, a paixão pelo tiro, evidentemente inspirada por políticas liberais praticadas em regiões dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ele satisfaz diretamente suas bases de apoio eleitoral, respondendo não com políticas que favorecem a segurança pública, mas que satisfazem os policiais individualmente”, analisa Durão. “Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro já realizou 30 atos normativos que visam à flexibilização”, aponta.
O QUE MUDA COM OS NOVOS DECRETOS?
A começar pela edição do Decreto 9.845/2019, o governo federal amplia de quatro para seis o limite de armas a cidadãos que possuem o Certificado de Registro de Arma de Fogo. Já integrantes da segurança pública, magistratura, Ministério Público, polícias penais, agentes e guardas prisionais veem esse número subir para oito.
Outro aumento significativo refere-se aos CACs, categoria que inclui colecionadores, atiradores e caçadores. Com a modificação do Decreto 9.846/2019, colecionadores poderão adquirir livremente até 10 armas, caçadores até 30 e atiradores até 60. Como resultado dessa medida, o delegado Hamilton Caviola alerta para uma potencial válvula de escape pela qual organizações criminosas poderão legalizar suas armas. “Se imaginarmos que os CACs, em teoria, são pessoas responsáveis e idôneas, eu não acredito que altere tanto o índice de criminalidade. Por outro lado, criminosos podem se organizar como CACs e comprar até 60 armas, já que o Exército só vai passar a autorizar se for excedido esse limite”, observa.
Diretor do clube de tiro e caça Combate, em Campinas, Paulo Calleri também não vê com bons olhos o novo padrão e teme que armas caiam em mãos erradas. “Como policial, instrutor e atirador, eu não tenho e nem preciso de 30 armas. O clube tem vigilância 24 horas e não mantém um estoque tão grande, somente o suficiente para uso e venda, mas meu medo é que as facções criminosas roubem locais com grande quantidade de armas, especialmente de propriedade de colecionadores”, adverte.
Além disso, o governo federal também estabeleceu novo parâmetro para avaliação de aptidão psicológica dos CACs. Se antes o laudo precisava ser fornecido por psicólogo cadastrado na Polícia Federal, agora basta o aval de um profissional com registro no Conselho Regional de Psicologia. No entanto, Paulo Calleri afirma que o exame psicológico é apenas a primeira etapa para se obter armas de fogo. “É um processo muito rígido, que ainda inclui exame de capacidade técnica, com provas escrita e prática”, pondera. “Não é algo fácil obter a documentação de autorização, sem falar que é necessário ser sócio de um clube homologado e que munição ainda continua muito cara no Brasil. Não é como nos Estados Unidos, onde há mais de 70 brands”, ressalta Calleri, que não acredita em um impacto tão forte em vendas de armas de fogo. Desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, o Combate registrou um aumento de apenas 20% no ato final de compra de armas.
Os novos decretos de Bolsonaro ainda reduzem a habitualidade dos atestados emitidos pelos clubes de tiro para a renovação da atividade de atirador. “Diminuiu de oito para seis treinos por ano. Antes, eram dois por trimestre, agora serão dois a cada quatro meses”, explica Paulo Calleri.
“Entre os atiradores, existe o atirador de fato, que é realmente praticante do esporte de tiro, e o atirador de direito, que só compra a arma, mas não pratica. Geralmente é esse último que dá algum tipo de problema”, salienta Calleri.
Por fim, com a atualização do Decreto 10.030/2019, Jair Bolsonaro desclassifica alguns armamentos como Produtos Controlados pelo Exército (PCEs). “Através do eufemismo da desburocratização, foram criadas facilidades para os adeptos das armas terem cada vez mais a oportunidade de se expandirem livremente e com menor controle do Exército e da Polícia Federal, avalia a professora Susana Durão.
“Com estas medidas, o governo determina que vários tipos de munições ficam fora de registro e controle do Estado, abrindo espaço para que cada um faça gestão de seus aparatos e arsenais”, afirma a especialista.
Entre outras mudanças, o governo federal garante o porte simultâneo de duas armas, amplia a lista de categorias profissionais com direito a adquirir armas e munições, além de permitir que adolescentes entre 14 e 18 anos pratiquem tiro desportivo com arma emprestada de algum colega, e não mais apenas dos pais ou do clube de tiro.
*Fotos Divulgação – Cedidas pelo clube de tiro e caça Combate, de Campinas