Seja você fã de reality shows ou não, não dá para negar: o Big Brother Brasil é o programa mais assistido dessa categoria no país. Produzido e transmitido pela TV Globo, o ‘BBB’ tem ido ao ar em edições anuais desde 2002; só neste ano, sua estreia (17/01) contou com mais de 5.6 milhões de espectadores por minuto apenas na capital de São Paulo.
A regra é simples: todo ano, participantes – anônimos ou famosos – entram em estado de confinamento por cerca de três meses, sendo vigiados por câmeras 24 horas por dia nos 7 dias da semana, enquanto competem entre si pelo favoritismo do público, que vota periodicamente em quem continua no programa e em quem deve ser eliminado; ao final, o participante predileto da audiência leva para casa 1.5 milhão de reais, além de patrocínios e diversas outras recompensas simbólicas e materiais.
Mas, ainda que todas as edições do BBB sigam uma mesma ‘receita de bolo’, a deste ano conta com uma participação bastante especial: a presença da artista Linn da Quebrada no grupo do ‘camarote’, que é composto pelos competidores já conhecidos por grande parte do público. Lina Pereira dos Santos, ou Linn da Quebrada, é muitas em uma – é cantora, compositora, atriz, roteirista, apresentadora de TV e ativista social. E, tão importante quanto tudo isso, Lina é travesti. Trans, não. Travesti.
Alina Durso, criadora de conteúdo e travesti, explica: “O termo ‘travesti’ surgiu muito antes do termo ‘mulher trans’ […]. O termo ‘mulher trans’ surgiu justamente como uma forma de higienizar e binarizar a identidade das travestis. ‘Travesti’ é um termo que, por muito tempo, e até nos dias de hoje, foi marginalizado e carrega muitos estigmas. […] Travesti é uma identidade feminina, uma identidade política e uma identidade latino-americana, já que esse termo só existe na América Latina e fora dela não tem tradução. Nem todas as travestis se reconhecem como mulheres, mas sim enquanto travestis. A travesti ter uma identidade feminina não necessariamente está ligada ao fato de ela ser uma mulher; ter uma identidade feminina significa utilizar pronomes femininos e se encontrar dentro da feminilidade”.
E esse é o caso de Linn da Quebrada, que se apresenta não como mulher, mas como travesti, e que utiliza exclusivamente pronomes femininos para se referir a si mesma. Inclusive, uma das maiores simbologias da sua identidade é a tatuagem que fez acima da sobrancelha, com o pronome “ELA”, para que sua mãe recordasse a maneira certa de se referir à filha.
Em sua apresentação pessoal no BBB, Lina disse: “Sou determinada, sou corajosa mas sou muito medrosa, sou complexa, sou contraditória; trabalho com o erro e com a falha, com o fracasso. Eu sou o fracasso. Eu fracassei, eu sou o fracasso de tudo aquilo o que esperavam que eu fosse; não sou homem e nem sou mulher, sou travesti”.
Para deixarmos o mais didático possível, um pronome nada mais é do que um termo que podemos usar no lugar dos nomes – exemplo: ao invés de Lina, podemos dizer “ela”; ao invés de Douglas Silva, outro participante do BBB 2022, podemos dizer “ele”. Fato é: todas as pessoas têm seus pronomes, sejam elas cisgênero, transgênero ou travesti. Contudo, o problema começa quando pessoas cisgênero – que se identificam com o gênero designado ao nascimento em razão da sua genitália – se recusam a utilizar os pronomes corretos para pessoas trans e travestis.
Desde a entrada de Lina no programa, diversos acontecimentos transfóbicos já ocorreram, desde competidores a tratando por ‘amigo’ ou perguntando se podem se referir à Lina como ‘aquele cara que é mulher’.
Ainda que seja razoavelmente compreensível a dificuldade de pessoas em compreender a identidade travesti quando entram em contato com o termo pela primeira vez, esses ‘erros’ têm sido contínuos e são tratados em tom de joça por quem os comete.
É importante lembrar que, desde 2019, a homotransfobia é reconhecida como crime em todo o território nacional de acordo com a Lei 7716/89. Mesmo assim, há quem diga: “Ah, mas são só algumas letrinhas, isso não é transfobia!”. Sim, são só algumas letrinhas, mas são letrinhas que importam. São letrinhas que reafirmam a identidade de todos, que manifestam quem as pessoas são, e que comunicam ao mundo a forma correta de tratar cada um.
Sim, são só algumas letrinhas, mas são letrinhas que demandam respeito. Se fosse mesmo tão comum e aceitável errar os pronomes, então por que não chamamos mulheres cis de “ele” e homens cis de “ela” com maior frequência? Por que esses ‘erros’ só acontecem com pessoas trans e travestis?
Lina, assim como as demais travestis e mulheres trans, merece viver com respeito e dignidade – e utilizar os pronomes femininos corretamente é apenas a pontinha desse iceberg. Se você cometer um erro honesto, que seu pedido de desculpas seja imediato e honesto. E, mais importante: que você mude o seu comportamento. Porque, como Lina deixou claro após três dias corrigindo os ‘erros’ dos demais participantes do reality: “Não dá mais pra ficar errando, né, já deu tempo [de aprender].”
Rafaela Obrownick, 20 anos, é estudante de Relações Internacionais da Facamp