Finalmente, depois de longos anos de pandemia e severas restrições sanitárias e econômicas, a alegria pediu passagem pelas ruas do Brasil no Carnaval deste ano, trazendo alívio à dor prolongada que vínhamos, há tanto tempo, sentindo! Será?
Entre confete, samba, cores e sorrisos, reflexões e mensagens poderosas são transmitidas por movimentos populares, enquanto fantasias ardilosas seguem infiltradas na folia, envolvendo multidões, dissimulando realidades através de entretenimento, diversão e arte.
A política do “pão e circo” é estratégia conhecida desde Roma Antiga e, ao que tudo indica, continua funcionando muito bem ao longo dos séculos. Entretanto, seria um reducionismo ingênuo supor que diferentes civilizações, por tanto tempo, se deixam levar pela recompensa passageira do espetáculo em troca de se submeter, conivente, à exploração e à obediência.
A subjetividade evocada pela cultura dos povos provoca a pensar sobre o papel que a arte ocupa na estruturação das sociedades, criando não só formas de controle e manipulação das massas, mas, principalmente, fendas e rachaduras por onde podem escapar inspirações disruptivas e germinar sementes subversivas.
Se o fascismo vislumbra o controle de corpos e mentes através da repressão e da censura, o festejo da alegria e da liberdade é, em si, um ato revolucionário. Ainda assim, é preciso cuidado. Os fetiches de objetificação e sexualização raramente contribuem para a destruição de dogmas e tabus que limitam as expressões de identidade e diversidade.
A mercantilização de lutas por igualdade, dignidade e respeito serve muito bem aos opressores quando reduz o empoderamento de grupos marginalizados e invisibilizados a uma guerra de popularidade e engajamento nas redes sociais.
Na avenida, ainda que enunciada como a festa mais popular e democrática, nem mesmo o Carnaval é capaz de superar barreiras socioeconômicas enraizadas no nosso dia-a-dia. Rompe, sim, as estruturas mais conservadoras e segregacionistas ao fundir o sagrado e o profano em sambas-enredo inspiradores, expondo contrastes e conflitos que há muito deveriam ter sido superados, mas que persistem – incluindo a violência contra mulheres, pessoas de pele preta, povos originários, gente que tem sua cidadania sequestrada por não corresponder aos padrões heteronormativos. Mas a divisão entre quem está trabalhando e quem está se divertindo segue nítida e quase intocada. Entre quem pode se manifestar livremente, até mesmo com discurso de ódio, e quem precisa ter cuidado com a própria segurança o tempo todo, também.
Ao mesmo tempo, a chuva que trouxe alívio a foliões espalhados nas comemorações do final de semana, incluindo bloquinhos de rua, clubes, camarotes, resorts e hotéis de luxo, trouxe desespero e sofrimento a milhares de pessoas que vivem em áreas de risco no litoral paulista.
Forçadas a ocupar encostas de Mata Atlântica desmatada pela voraz especulação imobiliária da indústria do turismo predatório na orla das praias, famílias perderam lares, entes queridos e o pouco que haviam conseguido juntar com enorme esforço ao longo dos anos.
Com rodovias e pontes interditadas, turistas, moradores, voluntários e socorristas puderam testemunhar a solidariedade comunitária e a união política em benefício da vida humana, enquanto donos de helicópteros fretavam voos por dezenas de milhares de reais e água era vendida a preço de whisky importado a quem passava sede e fome.
Indiferentes ao Carnaval, Rússia, Ucrânia e EUA seguem na escalada de destruição e violência na guerra que completou um ano sem perspectiva de melhora. Longe de acabar, o conflito continua se apoiando na fantasia da busca pela paz e pela democracia às custas de centenas de milhares de mortes, milhões de pessoas desabrigadas e bilhões de dólares gastos com armas. A indústria do extermínio permanece lucrando, assim como a imprensa carniceira que sobrevive panfletando caos e desgraça sem engajar-se, verdadeiramente, na luta por uma solução que possa pôr fim às manchetes sangrentas que tanto vendem.
Evidente que o Carnaval e as pessoas que o celebram não têm culpa pela tragédia humana – essa, também, encenada nos espetáculos da Grécia Antiga desde os primórdios. Terremotos devastadores na Turquia e na Síria, inflação e juros aumentando nos EUA e na Europa, as secas no sul do Brasil, o genocídio dos Yanomami na Amazônia, fanáticos religiosos e ultranacionalistas armados querendo guerra, horas a trabalhar, contas a pagar…
É preciso, em algum momento, desligar-se das notícias ruins e escapar da realidade para buscar alguma alegria, alguma felicidade, algum descanso. A fantasia trata-se justamente disso: um transbordar de desejos que irrompe a racionalidade, os padrões, as regras, os limites impostos. Mas, tal como a ressaca da quarta-feira de cinzas, a realidade da qual tentamos escapar inevitavelmente torna a nos capturar sem nenhuma cerimônia. Convém esperar que a quaresma acabe antes de confrontar certas fantasias?
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.