A vida demanda mistérios. Tudo seria muito diferente sem esses enigmas que ativam nossos impulsos a questionar, polemizar e oportunizar esforços na busca de esclarecer dúvidas e descobrir coisas novas.
As circunstâncias se entediariam. Tudo estaria monótono, sabido e definido. Não teríamos os desafios de experimentar aventuras, nenhum risco a ser superado, nenhuma curiosidade surgiria.
Digamos que tivéssemos alcançado um nível quase perfeito de evolução tecnológica, onde a previsão do tempo acertasse em 99% das vezes. A meteorologia garantiria uma noite estrelada magnífica e um nascer do sol deslumbrante. Talvez, para manter a graça, teríamos que fotografar o céu escolhendo um filtro que girasse em cores não programadas. Teríamos que criar ações que improvisassem as coisas…
À medida que a ciência desvenda os mitos, a vida pode mesmo ficar mais chatinha… É claro que não se pode negar que quanto mais se sabe, mais se quer saber. Sócrates já adiantava, na Grécia Antiga: “Só sei que nada sei”, mostrando a limitação do que se pode conhecer.
No entanto, como os voos pela vastidão do macrocosmo e os mergulhos surpreendentes pelo microcosmo vão mostrando o pouco que se conhece, dá para imaginar que sempre restará algo a ser descoberto.
Os segredos pessoais, corporativos e mesmo os de estado, para ciumentos, pretensiosos e combativos, são muito instigantes, provocando iniciativas de controle e vigilância. Os países mais desenvolvidos mantêm agências extremamente sofisticadas de segurança e espionagem.
Desfazendo mitos e resolvendo os problemas, intuitivamente, nos aproximamos das questões religiosas.
Como seriam as imersões nos mistérios mais inusitados, nas profundezas das religiões?
É muito interessante como o conceito de “mistério” se transforma quando entramos no âmbito da religião.
Enquanto na vida secular o mistério é algo a ser desvendado, desmentido, no domínio da religião, ao contrário, ele se torna uma verdade a ser compreendida e aceita pela fé.
Na teologia, o termo “mistério” não significa apenas um tópico desconhecido, mas algo que está além da compreensão humana, revelado e sustentado por divindades.
Em vez de ser um bom quebra-cabeças para desafiar as soluções, o mistério religioso é entendido como uma verdadeira realidade. E mais: uma realidade tão extraordinária que a razão não consegue abarcá-la completamente.
Vejamos alguns exemplos de mistérios que, nas religiões, são “verdades reveladas”.
Na tradição cristã, a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) e a Encarnação de Jesus (Deus se tornando homem) são referências. A fé é a única maneira de explicá-las e, principalmente, aceitá-las, pois a mente humana não as concebe.
No catolicismo, rezar o terço é uma meditação sobre os “mistérios” da vida de Cristo.
O Rosário da Virgem Maria é composto por três (originalmente, depois quatro) mistérios com 150 Ave-Marias. Inicia com os Mistérios Gozosos (vida), os Dolorosos (morte) e os Gloriosos (glória).
Na puberdade, frequentando a paróquia do bairro, eu ficava impressionado pela sequência de etapas misteriosas que empolgava os suplicantes rezando a sequência de um rosário.
Que sistematização bonita, artística, didática! É impressionante como as igrejas e seus doutrinadores são inteligentes, perspicazes, obsessivamente estéticos! A sedução é quase irresistível.
E mais! Em 2002, o Papa João Paulo II sugeriu uma nova série, que ele batizou de mistérios luminosos.
As antigas religiões gregas prometiam aos iniciados um destino favorável na vida após a morte, revelando segredos divinos através de rituais. Essa promessa de salvação é a mesma que se oferece na atualidade, o que atrai e mantém os fiéis ao longo de milênios.
A Torá, o livro sagrado do Judaísmo, dispõe de narrativas sobre leis e condutas, mas implica um conhecimento mais complexo e esotérico, conhecido como Cabalá. A Cabalá busca entender os mistérios da criação, a natureza de Deus e a relação divina com o universo.
A iluminação budista, ou nirvana, talvez seja a experiência religiosa menos misteriosa. Começa da questão inicial que debate se o budismo é ou não uma religião. Depois, os questionamentos se mesclam nas implicações de representar uma experiência a ser vivida. Vivida, sem mitos.
Nas religiões, ao invés de representarem a escuridão do desconhecimento, os mistérios são luzes de adoração e reflexão.
O mistério religioso não é um enigma a ser resolvido. É um convite à fé, uma suposta verdade que a razão pode tocar, mas nunca dominar totalmente. Para prosseguir como sustentáculo da fé, o mistério religioso não pode ser esclarecido.
Uma prova concreta e indiscutível da existência Divina, que dirimisse qualquer dúvida sobre isso, que não mais abrisse indagação científica sobre Deus, esculhambaria com a crença, acabaria com a fé. A certeza de uma comprovação científica sobre a existência de Deus reduziria a vida a algo realmente sem graça… No entanto, o questionamento é natural, tem que prosseguir.
Os religiosos, especialmente os profissionais da religião, insistem na ideia de que a fé é luz, que ilumina o destino dos crentes, que os salva. Apresentam isso como se fosse mesmo um esclarecimento iluminado, uma verdade com força científica.
No meu livro “Ideias e Luzes” (Ed. Pontes, 2017), ofereço algumas reflexões sobre esses tópicos. A fé é uma construção, equivale a uma maravilhosa e convincente ficção, talvez a obra-prima da arte humana. Na ilusão da criação artística, podemos nos enganar, acreditando que a fé esteja iluminando o desconhecido. A rigor, por necessitar inexoravelmente do mistério, ela escurece a vida.
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor











