Em junho passado, Fernando Henrique Cardoso completou 94 anos de vida. Com muita experiência pessoal e profissional, chegou à presidência da República. Intelectualmente, foi um dos maiores expoentes brasileiros. Ele sugere a reflexão: “Cada um tem que inventar sua resposta. Dar sentido à sua vida. A vida, em si, não tem sentido. Cada um tem que construir o seu sentido. E vai sofrer para encontrar.”
Esse sofrimento talvez não seja vivenciado por aqueles que têm uma crença decidida e vigorosa na salvação religiosa. Para eles, o sentido da vida é claro e definido, é uma temporada de preparo para a vida eterna. No Novo Testamento, a segunda epístola de S. Paulo a Timóteo (4:18) indica: “O Senhor me livrará de toda obra maligna e me levará a salvo para o seu Reino celestial. A ele seja a glória para todo o sempre. Amém.”
O recentemente falecido Papa Francisco falou sobre a certeza de um destino eterno para o crente: “Eis o que Jesus fez por nós: nos reservou um lugar no Céu. É a certeza que nos consola: há um lugar reservado para cada um. Não vivemos sem meta nem sem destino. Somos esperados.”
Nessa ordem, ele próprio, Francisco, morto há pouco tempo, deve estar experimentando essa sequência prevista. Nos textos sagrados judeus do Talmude, existe a garantia do “Mundo Vindouro” para todos os justos, destacando a abrangência da salvação para além do povo judeu: “Os justos de todas as nações têm uma porção no Mundo Vindouro.”
As religiões nos colocam nessa zona de conforto, exaltam e reforçam sistematicamente a fé, a crença que salva os justos.
A seleção divina faria essa distinção, salvando esses julgados como merecedores. A justiça divina é inacessível, imponderável. Se um juiz humano é imprevisível – “cada cabeça, uma sentença” – imagine um julgamento divino…
No exercício cotidiano das escolhas, decisões e trajetórias vitais, os humanos precisamos dos valores da justiça. O professor e filósofo político norte-americano Michael Sandel critica as referências habituais, baseadas no utilitarismo e no liberalismo, mostrando que uma teoria da justiça deve incorporar virtudes e resultados éticos.
A pessoa que exerce as virtudes e, fundamentalmente, prima pela ética, no plano horizontal dos limites humanos, seria um justo. Na dimensão vertical, não sabemos em que Deus se basearia nem se Ele julgaria como nós.
Tentemos, então, aprimorar a horizontalidade. As demandas verticais ficam para os mistérios póstumos.
Filósofo europeu contemporâneo, o francês Luc Ferry indica que o caminho é enfatizar a transcendência (aquilo que é maior do que nós), que essa transcendência não está em um Deus, mas nas relações humanas, no exercício do amor, na realização profissional e pessoal.
Para o não crente, viver assim funciona bem. Divisa o excelente panorama das capacidades e das limitações da razão filosófica diante da morte.
Por seu lado, o crente pode apreciar o esforço filosófico, mas tende sempre a manter a convicção de que o problema da finitude só é resolvido por algo que está além da filosofia, além do humano. Além do humano, mas que existe!
Os enigmas do que está além do humano sempre incomodam, sustentando as hesitações dos crentes. Há os que insistem na fé, reforçam as crenças diante de uma dúvida, e os que passam a reconhecê-las como ilusões.
O filósofo alemão (nativo do Reino da Prússia) Immanuel Kant, no século 18, enaltecia o iluminismo como a “saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.” Para ele, a ilusão resulta da preguiça e da covardia de não usar a própria razão. Kant tentava encorajar os seres humanos: “Sapere Aude!”, ou seja: Ouse saber!
Outro filósofo europeu, em plena atividade neste século 21, o francês Michel Onfray, vai além. Ele faz crítica mais dura, pesada e centralizada aos crentes, particularmente seguidores das três religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Onfray diz que a fé religiosa é um produto do ódio à vida, ao corpo e à razão, e que as religiões são responsáveis pela miséria e pelo sofrimento infligidos à Terra…
Ateísmo militante e desafios filosóficos levantam questões importantes e decisivas, mas mobilizam poucas pessoas. A grande maioria segue no conforto e na ilusão da fé.
Tenho levantado essas questões em meus trabalhos, nos quais eu mais convido à reflexão do que faço críticas. Inclusive, publiquei algumas matérias com o epíteto “questionateu”.
No livro “Ideias e Luzes” (Ed. Pontes), pondero: “Deus é a obra-prima da arte humana que a fé ilumina como ciência”.
Levei esta frase à IA, que respondeu: “A ideia de Deus é a maior invenção moral e conceitual da humanidade, criada para dar sentido ao mundo. Essa invenção é tratada pelos crentes não como uma hipótese (arte), mas como uma verdade absoluta (ciência), graças à certeza inquestionável fornecida pela fé”.
“Certeza inquestionável”: que coisa impactante! Será mesmo que não seria repensável? Permaneceria no aprisionamento da imunização cognitiva?
O renomado escritor italiano, nascido em Cuba, Ítalo Calvino, falecido em 1985, nos anima: “Ser capaz de colocar continuamente em questão as próprias opiniões: esta é, para mim, a condição preliminar de qualquer inteligência”.
Questionar sempre pode apenas manter dúvidas, mas Isso seria muito melhor do que uma certeza “fake”…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor











