Não é suficiente declarar a Tarifa Zero (TZ). É preciso pagá-la. Quando a cidade não consegue sustentá-la, a TZ declara o seu próprio fim. Este é o retrato de Monte Mor, onde o que começou como símbolo de justiça social terminou como símbolo de improviso administrativo. Implantada com entusiasmo, a TZ mostrou que boas intenções não pagam contas. A prefeitura justifica a medida com a inviabilidade financeira. Manterá a gratuidade para idosos, pessoas com deficiência e moradores em extrema pobreza, além de oferecer descontos para estudantes.
A ideia da Tarifa Zero (TZ) no transporte público está passando por um período de rigoroso escrutínio. Os relatórios da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) (“Tarifa Zero nas Cidades do Brasil-2024” e “Tarifa Zero nas Cidades do Brasil-2025”), embora reforcem a expansão do modelo, acendem um alerta sobre sua sustentabilidade e os desafios à sua implementação. A análise desses documentos revela uma evolução no pensamento sobre a TZ: de uma celebração do crescimento para uma busca urgente por respostas e viabilidade da gratuidade universal.
Inicialmente, o cenário era de expansão. O relatório de 2024 apontava para um aumento substancial de cidades adotando a TZ, com um salto notável entre 2020 e 2023. Entretanto, a atualização de 2025 revela um crescimento que desacelerou em 2024. Esse arrefecimento levanta a primeira grande questão: as barreiras para a TZ universal estão se tornando mais evidentes do que seus benefícios e sustentabilidade?
Um dos pontos mais notáveis que emergem da análise comparativa entre os dois relatórios da NTU é o que poderíamos chamar de “grande vazio” nas cidades de maior porte. Enquanto o relatório de 2024 ainda se focava nas “25 maiores cidades”, o estudo de 2025 se aprofundou e revelou que apenas 12 municípios com mais de 100 mil habitantes implementaram a TZ de forma universal. Esse dado é um balde de água fria na expectativa de que a TZ pudesse ser uma solução abrangente para grandes cidades. O que dizer de metrópoles e de suas regiões metropolitanas onde o transporte está a cargo de mais de um ente federativo? Fica claro que a escalabilidade é um desafio concreto, não meramente teórico.
Contudo, talvez o desafio mais persistente que transparece em ambos os relatórios seja a lacuna crítica de dados.
O estudo de 2024 já alertava para a falta de informações estatísticas rigorosas. O de 2025, de forma ainda mais contundente, lamenta a “falta de dados básicos para monitoria” em muitos dos sistemas implementados. Como avaliar o verdadeiro impacto social, econômico e ambiental da TZ sem métricas consistentes sobre aumento de demanda, custo por passageiro, redução de veículos individuais, ou até mesmo os impactos nas atividades comerciais locais? Essa ausência de dados torna difícil ir além das percepções e comprovar a efetividade da TZ.
A NTU demonstra um refinamento metodológico louvável em ambos os relatórios. Apesar desse avanço analítico, as respostas fundamentais sobre a sustentabilidade a longo prazo e a replicabilidade em larga escala continuam em aberto.
A desaceleração do crescimento em 2024 sugere que o “boom” inicial de adoções, muitas vezes impulsionado por promessas eleitorais ou anseios sociais legítimos, está encontrando seus limites. Há uma clara evolução no pensamento: de uma visão mais otimista e centrada na implantação, para uma perspectiva mais cautelosa, pragmática e focada na sustentabilidade.
A discussão sobre a TZ precisa transcender a mera contagem de cidades e se aprofundar na compreensão dos “porquês”. Por que o crescimento da TZ desacelerou? Por que é tão difícil em cidades maiores? Como garantir o financiamento e a qualidade do serviço a longo prazo? A prioridade agora não é apenas implementar, mas monitorar, avaliar e garantir a sustentabilidade dos modelos existentes.
As implicações para as políticas públicas futuras são claras. Não se trata apenas de “se” a TZ é uma boa ideia, mas de “onde”, “quando” e “como” ela pode ser implementada de forma eficaz e sustentável. É imperativo que futuros estudos se concentrem em modelos de financiamento inovadores e sustentáveis, na criação de sistemas de monitoramento de dados e em análises de impacto socioeconômico que possam de fato validar ou refutar as promessas da TZ.
Em suma, a análise comparativa dos relatórios NTU 2024 e 2025 reflete a maturação de uma discussão que se iniciou com entusiasmo e agora adentra a complexidade da realidade. A TZ deixou de ser uma mera ideia para se tornar um objeto de estudo que demanda rigor científico e pragmatismo. O desafio atual não é apenas celebrar suas conquistas nas pequenas cidades, mas garantir que as iniciativas já em curso se sustentem e que as futuras sejam implementadas com a devida base de evidências e planejamento para não se tornarem um fardo para as cidades e seus cidadãos.
A Tarifa Zero não pode durar o tempo de uma promessa eleitoral mal calculada.
Jurandir Fernandes foi secretário de Transportes de Campinas e secretário de Estado dos Transportes Metropolitanos (SP). Presidiu a Emdec (Campinas), a Emplasa (São Paulo), o Denatran (Brasília) e os Conselhos de Administração do Metrô-SP, CPTM e EMTU-SP. Coordena o Grupo de Mobilidade do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. É membro do Conselho Internacional do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (Unicamp) e do Conselho da Frente Parlamentar pelos Centros Urbanos (Brasília). É vice-presidente honorário da UITP (Bruxelas).











