O caminho foi repleto de obstáculos. Foram necessários dois aviões, barco e carro para chegar até o Vale do Javari, no Amazonas. A missão daquele homem branco de 34 anos era trocar alianças com a indígena Kena, de 24, na maloca da família dela, pertencente à etnia Marubo. E o casamento aconteceu em novembro passado em uma cerimônia que representou muito mais do que uma declaração de amor a uma indígena. A união também serviu para reforçar um compromisso assumido no decorrer dos últimos seis anos de cuidar dos povos esquecidos nos lugares mais isolados do país. Um trabalho que começou muito antes da exposição pública das mazelas dos yanomami.
Para o campineiro Felipe Martins, a trajetória de transição de valores foi mais árdua do que o caminho até o Vale do Javari. Nadador profissional, com passagens pela seleção brasileira, por clubes da cidade, competições regionais, estaduais, nacionais e internacionais, Felipe precisou superar um choque para mergulhar em outras águas.
“Um dia acordei e percebei que não tinha mais os movimentos em um dos lados do meu rosto”, conta Felipe, que na ocasião era preparador físico da equipe de ponta de natação do Minas Tênis Clube, de Belo Horizonte. Resultado de estresse, a paralisia o fez pedir demissão do emprego. E uma semana depois, uma nova porta se abriu para um caminho sem volta.
Com a experiência de quem já havia realizado mergulhos em profundidade nos oceanos ao lado do irmão e nadador olímpico Henrique Martins, Felipe criou o projeto Parque Marinho do Brasil, que foi inscrito em um espaço para novos exploradores no site da National Geographic.
“Era um trabalho voluntário para a produção de conteúdo que seria publicado em um blog do site”, conta Felipe. Junto da fotógrafa Carol Brenck, do filmmaker Roberto Benatti, além de apoio de outras equipes e elogios da inglesa Madeleine, editora do site, o campineiro montou a expedição. E as filmagens da Costa Brasileira ganharam repercussão.
“Em três semanas, conseguimos alcançar o top 3 no mundo em visualizações dentro do site”, conta. Despertava de vez naquele momento uma conexão com a natureza que ficou adormecida por vários anos.
Raízes
Fã dos programas dos canais Discovery Chanel e National Geographic desde criança, Felipe tem uma raiz ligada à cultura socioambiental que vem de família. “Meu pai era botânico. Ele morreu quando eu tinha 7 anos, mas sempre o via envolvido com pesquisas, microscópio, folhas, plantas e em incursões pelo mato em meio a animais.”
Com 11 anos, a natação passou a fazer parte da vida de Felipe, mas os caminhos o conduziram de volta às origens. Aposentado das piscinas e da profissão de modelo, que também exerceu por algum tempo, o campineiro investiu em cinco projetos voluntários pela National Geographic. E apesar da satisfação em poder mostrar as belezas e também os problemas envolvendo o descarte de lixos na natureza, o viajante admite que “quebrou”. Sem dinheiro, passou organizar expedições turísticas. Mas um cenário o intrigava.
As condições precárias em que viviam as comunidades tradicionais passaram a chamar a atenção de Felipe em suas passagens por regiões isoladas. Tanto que o envolvimento com elas passou a ser frequente.
“Nesses últimos anos, tive contato com os mais diversos biomas e culturas e a ausência de um aparo para essas populações é dramático para quem vê. Perdi dois indígenas amigos meus por falta de tratamento. E isso mexeu muito comigo.”
Os indígenas que morreram pertenciam à aldeia Afukuri, no Xingu. “Um deles era um cacique chamado Arifutua Kuikuro. Em 2019, ele ficou muito doente, perdeu peso e juntei todas as minhas economias para trazê-lo à Unicamp. Apesar do tratamento no hospital com especialistas, ele não resistiu. Para mim, foi como perder alguém da família, pois a esposa dele me chama de filho e os filhos dele me chamam de irmão até os dias de hoje.”
Já a outra morte motivou o ex-nadador a investir em uma frente de saúde junto às comunidades. “O Felly Kuikuro ligou para mim pedindo ajuda e eu não pensei que fosse algo tão sério. No ano passado ele morreu de pneumonia aos 21 anos. A partir de então, passei a organizar expedições de saúde pelas aldeias, levando médicos e dentistas até essas localidades.”
Felipe tem hoje uma empresa, a Go Martins, que trabalha na criação, planejamento e execução de conteúdo para projetos de responsabilidade socioambiental e educacional. E ainda neste mês de março, sua intenção é oficializar o Instituto Brasileiro de Saúde e Sustentabilidade, uma ONG voltada ao cuidado dos povos originários.
O planejamento é captar investimentos para que haja uma estrutura adequada de atendimento às comunidades. “Queremos levar tratamento de forma pontual e também trabalhar no sentido de criar condições para que as comunidades possam se sustentar de forma saudável.”
De volta ao Vale
Felipe não tem parada fixa. “Sempre que posso fico em Campinas, mas meu objetivo é mudar para a Amazônia, num terreno na beira do rio, fazer agrofloresta e poder montar meus projetos de lá, só viajando para executa-los.” E agora, no final de março, ele tem uma missão especial. “Estou voltando junto com a Kena para Vale do Javari para ficar mais próximo da região dela.”
Confira imagens da expedição de saúde que aconteceu esse ano na comunidade Afukuri, no Xingu/Por Samuel Oscar