Difícil não se abalar ao ver as imagens das obras de arte destruídas em Brasília após os atos de vandalismo à sede dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Um dos que se entristecem ao lembrar das peças deterioradas é José Ruas. Conhecedor profundo do sentimento envolvido na perda de um objeto, cujo valor extrapola os limites da obra em si, Ruas também sabe o trabalho que demanda na recuperação. Afinal, restaurar histórias faz parte da vida desse campineiro há mais de 30 anos.
Para Ruas, impossível não comparar as obras de arte de Brasília com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, da Catedral Metropolitana de Campinas. Foi a partir da destruição da valiosa peça da tradicional e histórica igreja no Centro que ele descobriu a arte de reavivar perdas ou até mesmo ressignificar valores.
“Aprendi tudo com o profissional que refez aquela imagem”, conta o campineiro de 62 anos, restaurador de arte barroca e sacra.
A cena que transformou em cacos a venerada santa está na mente de Ruas. “Um homem alterado entrou na igreja, tirou as roupas, ficou completamente nu e empurrou a imagem para baixo. Foi no final dos anos 80.” O trabalho de restauração levou dois meses, lembra, e foi coordenado pelo seu amigo e professor.
“Vi ele montando e colando cada pedacinho. Tive o privilégio de fazer parte. Coloquei minha mão ali no trabalho de recuperação”, conta Ruas, que se emociona ao lembrar do caso. “O nome dele era Mauro. Nunca mais o vi.”
A trajetória do restaurador é carregada de envolvimento com as histórias e emoções dos clientes. Uma senhora de 96 anos, por exemplo, não sai de sua mente.
“Era a dona Maria. Lembro que ela ficou doente quando o neto empurrou uma imagem de São Judas Tadeu de 30cm, presente da mãe que a acompanhava desde os 15 anos de idade”, conta. “Mas o rosto dela de satisfação ao se deparar com a imagem restaurada, depois de ter ficado completamente destruída, não tem preço.”
Uma imagem de São Jorge também está entre as que o artista guarda na memória. “Ela tinha sido passada de geração em geração e já estava esfarelando, mas consegui salvá-la.” Ele conta com emoção também sobre a recuperação de uma peça de Jesus na cruz. “Pertencia a um homem e a mulher dele havia quebrado por ser evangélica. Mas a própria mulher, arrependida, procurou a restauração. Quando entreguei o trabalho pronto, ela chorou.”
Ruas não se cansa de repetir de que maneira trabalha com as tintas PVA ou acrílica, pinceis, cola branca, pó de cerra, massa de madeira, gesso, entre outros materiais.
“A gente vai encaixando e colando como se fosse um quebra cabeça, com o cuidado de não alterar a forma original. São horas procurando as cores certas.”
A paciência exigida no processo é uma terapia, garante. “Teve época que eu tomava calmante, era muito nervoso. Hoje, nem remédio para pressão eu tomo mais.”
Em Campinas, Ruas já restaurou imagens da Catedral Metropolitana, Paróquia São Benedito, Igreja Santo Antônio, Capela São Miguel, Lar São Vicente de Paulo e o trabalho se estende às cidades do interior de São Paulo e sul de Minas Gerais.
Ele conta que restaura também imagens de outras religiões, como do budismo e de matrizes africanas, além de molduras de quadros e peças de mármore. Ruas garante que só uma vez sua restauração gerou polêmica: “O padre queria que eu pintasse o manto de São Benedito de branco e assim fiz. Mas outro padre da mesma paróquia disse que era para manter a cor original marrom. No fim, os padres quase se pegaram.”
Hoje, Ruas, que nasceu dentro da própria casa da família, na Rua Proença, onde sua mãe deu à luz, não se esquece de agradecer. Para isso, sempre se lembra de passar na Catedral Metropolitana, onde a imagem de Nossa Senhora da Conceição o faz recordar de quando começou a arte da restauração. Para evitar novos acidentes, a peça fica guardada numa redoma de vidro à prova de bala. “Se olharmos de perto, nem parece que ela foi restaurada. Está intacta.”