Que a educação vem sendo cada vez mais reduzida a uma mercadoria acessível apenas às classes com maior poder aquisitivo, infelizmente, não é novidade. A violência institucional contra docentes, estudantes, familiares e pessoas engajadas com a universalização de uma educação emancipatória, da mesma forma, continua fazendo parte de uma “normalidade” perversa, agravada pelos constantes ataques, com endosso do próprio Estado, à ciência, ao senso crítico e aos espaços democráticos de diversidade de saberes.
Entre as estratégias de biossegurança adotadas em decorrência da pandemia, pegaram carona e se infiltraram nas instituições de ensino medidas não só de precarização do trabalho docente, como também de aumento sistemático da vigilância e do controle sobre o ambiente escolar, geralmente sustentadas por argumentos fantasiosos envolvendo teorias conspiracionistas e um pavor flagrante de que jovens estudantes desenvolvam a capacidade de pensarem por si sós, questionando dogmas, tabus e conservadorismos que já não cabem mais em uma sociedade guiada pela inclusão, pela solidariedade, pela justiça social e pelo pensamento científico.
Diante da resistência de quem se opõe a esse caminho, é compreensível que atacar o potencial transformador da educação seja necessário para dar manutenção a um sistema excludente, autoritário, repleto de contradições baseadas em retóricas fajutas de falso moralismo, preconceito e uma crença quase obstinada de que tudo precisa permanecer exatamente como é, “porque assim sempre foi e assim sempre será”.
Vale lembrar que três décadas atrás não havia celulares e nem internet no Brasil. Há 150 anos, a escravidão de pessoas negras ainda ela legalizada e a eletricidade era vista como bruxaria por alguns grupos. Com muita luta e mobilização popular, o mundo muda, sim, e muito!
Inviabilizar essas mudanças e tentar impor uma agenda conservadora, retrógrada e tirânica, em muitos casos, passa por exigir que professores e professoras sejam sempre dóceis.
Na concepção de Foucault, pessoas submissas, obedientes, úteis aos propósitos designados pelas instituições que ditam as regras de conduta social – o Estado, a Igreja, o Capital, usando, inclusive, da voraz influência da inteligência artificial padronizadora de tendências e comportamentos das redes sociais.
Essa docilidade pode ser cobrada como devoção, vocação ou amor à profissão. À resiliência de quem, mesmo sem lousa, sem giz e até sem salário, desvalorizado, sobrecarregado e ameaçado, desdobra-se para levar educação à juventude abandonada nas periferias. Espetacularizada, pode ser premiada por uma sensação de popularidade quando são promovidos a mestres, gurus, influenciadores ou exemplos a seres seguidos justamente os dóceis-docentes que se submetem a cumprir a cartilha da educação-mercadoria, da obediência e da anestesia; enquanto são punidos com censura, perseguição e reprovação os docentes que continuam a buscar a fagulha da educação transformadora no atrito dialógico, na indignação frente ao inaceitável, no incômodo que provoca rupturas na letargia do conformismo e da normalidade.
Enquanto câmeras vigiam, implacáveis, o percurso que leva à produção do conhecimento, aumenta a pressão para que as interações humana face-a-face possam ser resumidas em uma vídeo-aula, em mais um arquivo perdido na nuvem ou, a quem resista à docilidade, em uma arma para provocar linchamentos e cancelamentos virtuais.
A burocracia da educação bancária, tecnicista e desumanizada, soma-se ao autoritarismo da vigilância, esvaziando completamente o sentido pedagógico da criatividade, da autonomia, da subversão e do enfrentamento dos abusos disfarçados e promovidas pelo individualismo como preço justo a se pagar por salário, por aceitação, por status ou popularidade.
Dóceis-docentes devem evitar que cidadãos e cidadãs em formação se frustrem ou percebam as contradições da sociedade em que vivemos.
Precisam garantir que a ilusão de uma vida de privilégios e escolhas fáceis, para quem tem condições financeiras, dure tanto quanto o dinheiro possa pagar. Para quem vive às margens, cabe aos dóceis-docentes ensinar a abnegação e o conformismo, para que os explorados sejam úteis a quem explora. Dóceis-docentes precisam submeter a si mesmos à vida amortecida de tarefas burocráticas e repetição fordista de rotinas que induzem à obediência, à alienação e à legitimação das estruturas de controle vertical. Com um sorriso no rosto e gratidão pela oportunidade.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.