Nem sempre se comemorou o Dia da Consciência Negra no dia 20 de novembro. Até pouco tempo atrás, a “abolição da escravidão” celebrava, a bem dizer, a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, “a redentora”, em 1888, após quase quatro séculos de exploração covarde, cruel e desumana de pessoas negras – trazidas do continente africano e nascidas em terras brasileiras – que, acorrentadas e coagidas pela cruz e a espada, deram forma a ruas, engenhos, lavouras, fazendas, quarteis, palácios e igrejas onde eram tratadas como criaturas subumanas mercantilizadas.
Desde o final do século XIX, apesar de a escravidão ter sido, legalmente, abolida, temos testemunhado cotidianamente as muitas violências decorrentes do racismo estrutural que persiste em nosso país. Dados da Pnad-IBGE (2020/2021) revelam que dos quase 15 milhões de pessoas desempregadas no Brasil, 72,9% são negras. Também de acordo com o IBGE, em consonância com pesquisas feitas pela PUC-Rio, Fiocruz e dados do Ministério da Saúde, a mortalidade entre vítimas da Covid-19 entre pessoas negras é bem maior do que entre pessoas brancas – diferença atribuída principalmente às condições de vulnerabilidade socioeconômica em que vivem muitas das famílias descendentes de povos trabalhadores escravizados, visíveis pelo Estado apenas sob a mira de armas de fogo e políticas de extermínio.
No último país a abolir a escravidão em todo o continente americano, foi um passo importante (embora insuficiente) criar um Dia da Consciência Negra em memória da morte de Zumbi dos Palmares.
Em 20 de novembro de 1695, o mais importante líder de resistências quilombolas, Francisco Zumbi foi capturado e assassinado por bandeirantes durante uma das muitas batalhas travadas entre quilombolas que reivindicavam liberdade e as forças militares a serviço dos senhores do engenho e barões do café, escorados pelas Leis e dogmas impostos pela Coroa e pela Igreja.
Todavia, além da tentativa de apagar o protagonismo de mulheres negras e homens negros que lideraram focos revolucionários e deram a vida na luta pelo fim da escravidão, ainda há versões conservadoras e enganosas que tentam romantizar as atrocidades que até hoje repercutem na segregação da perversa pirâmide onde se vê a sociedade brasileira: no topo, pessoas que herdaram espólios da escravidão, da invasão de terras indígenas, da exploração predatória de recursos naturais e do secular coronelismo à brasileira; e, nas bases, pessoas que, jamais indenizadas pelos abusos históricos cometidos contra seus ancestrais escravizados, continuam viabilizando o funcionamento econômico da nação brasileira expostas à fome, à miséria, ao frio, à intolerância, ao desabrigo – por mais que trabalhem, se esforcem e ajam de acordo com a lei.
Enquanto nomes de coronéis, barões, sacerdotes e imigrantes europeus batizam ruas, parques, praças, teatros, escolas (muitas pessoas honestas, trabalhadoras e talentosas aí incluídas, mas, também, gente que prosperou praticando ou sendo cúmplice de atos imorais, abomináveis e injustificáveis), os nomes de pessoas negras que continuam a lutar por dignidade, liberdade, justiça social, igualdade de direitos e de oportunidades, tendem a sumir nos obituários a depender da vontade de quem vira as costas para a história do Brasil ou, pior, se posiciona contra a luta necessária e urgente pela erradicação do racismo, da intolerância e das incessantes tentativas de genocídio de quem não tem pele branca ou sangue azul.
No aprofundamento das muitas crises estruturais no Brasil, o mês de novembro e o Dia da Consciência Negra devem ser oportunidade para refletir (antes tarde do que nunca) sobre a afirmação de que, por aqui, todos temos sangue negro e indígena: ou nas veias, ou nas mãos.
E, ainda que a violência entre semelhantes muitas vezes seja incentivada pela insana competitividade do capitalismo, fica cada vez mais claro quem lucra e quem paga com a própria vida pela manutenção de um sistema perverso, excludente, desonesto e conservador de práticas e valores contrários à democracia, à liberdade e à dignidade dos seres humanos.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes.