A formação cultural e política do Brasil foi moldada sob a sombra da cruz e da espada. Desde o início da invasão colonial, o cristianismo foi deturpado e usado como ferramenta de controle, apagando saberes de povos originários e africanos enquanto forjava uma identidade nacional moralista e conformista. Ao longo dos séculos, a resignação e o conservadorismo foram usados para reprimir a inspiração libertadora e compassiva pregada pelo próprio Cristo.
Apesar da violência, da censura e das imposições da Igreja, o sincretismo religioso floresceu. A fé católica, misturada aos orixás, encantados, pajelanças e práticas populares criou uma espiritualidade peculiar, vibrante e complexa. É um cristianismo à brasileira: híbrido, cheio de contradições e, algumas vezes, potencialmente revolucionário.
A chegada de ideias iluministas, que inspiraram transformações políticas principalmente na Europa, não teve aqui o mesmo impacto subversivo. No Brasil, elites conservadoras, ruralistas e escravocratas, tomaram essas ideias para si, usando-as para manter o status quo mesmo após a independência do país e o fim da escravidão. O progresso científico foi sendo mercantilizado, exclusivo de minorias ricas, enquanto a maior parte do povo, incluindo a classe trabalhadora, ficava apenas com a promessa do Paraíso depois da morte.
No alvorecer das repúblicas latino-americanas, o populismo se tornou a cola de um projeto nacionalista desconexo, misturando heranças colonial-escravistas com ideologias do imperialismo estadunidenses, como o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe. No caldeirão cultural, o cristianismo brasileiro se expandiu, plural e assimétrico, manifestado em católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas e saberes de povos originários – tudo prensado à força no positivismo que defendia ordem e progresso.
No século XIX, as teses marxistas começaram a jogar luz sobre o papel alienante da religião em nações democráticas. Denunciavam a manipulação da fé como anestesia social, que mantinha o povo calado diante da exploração econômica. No Brasil, essas ideias se espalharam devagar, mas começaram a provocar debates importantes, especialmente entre jovens universitários e movimentos sociais no campo e em regiões marginalizadas.
Durante a Guerra Fria, o protestantismo estadunidense, ferramenta da disputa ideológica da época, exportou ao Brasil um caminho agressivo: anticomunismo, liberalismo econômico e teologia da prosperidade. Essa nova roupagem da fé condenava a pobreza como fracasso pessoal e exaltava o enriquecimento como prova da bênção divina. Ao mesmo tempo, a Teologia da Libertação, ligada ao acolhimento dos mais pobres e à justiça social como forma de compaixão, era acusada de ser uma prática comunista.
No Brasil nunca houve guerras religiosas como no Oriente Médio, mas isso não quer dizer que não exista violência estrutural legitimada pela fé. As divisões internas da religiosidade brasileira são cada vez mais profundas, dividindo o cristianismo, não apenas entre católicos e evangélicos, mas dentro do próprio evangelicalismo, onde vozes progressistas seguem lutando por direitos humanos e resistem ao discurso de ódio e à mercantilização da fé. É preciso consciência e autocrítica para que a crença do amor ao próximo não seja devastada por narrativas fantasiosas de inimigos espirituais, apelos morais seletivos e um fanatismo que transforma o altar em palanque.
É aí que entra Apocalipse nos Trópicos (2024), novo documentário de Petra Costa. Depois de impactar o mundo com Democracia em Vertigem (2019), a cineasta retorna com uma análise contundente da aliança entre empresários da fé e lideranças políticas, a exemplo da relação simbiótica (e parasitária) de figuras como o pastor bilionário Silas Malafaia e o ex-presidente Jair Bolsonaro, investigado por tentar um golpe contra o Estado Democrático de Direito.
A obra provoca ao mostrar como setores da fé cristã vêm sendo corroídos por especuladores, empresários e políticos que lucram com uma guerra cultural. O discurso do amor virou arma ideológica, e a salvação, um produto vendido com marketing sensacionalista, fake news e discurso de ódio. Evidente que nem todo cristão, católico ou evangélico, compactua com essa lógica: muitos rejeitam a teologia da prosperidade e defendem os direitos humanos.
O poder da bancada fundamentalista no Congresso e sua aliança mercenária com o Mercado, todavia, mostram quem grita mais alto.
Petra sustenta sua tese com imagens fortes e dados estarrecedores. Mostra como a bancada evangélica se tornou uma das forças políticas mais poderosas do país. E como pastores empreendedores, vendilhões da fé, seguem enriquecendo vendendo promessas enquanto expandem seus impérios para além dos templos: canais de TV, partidos políticos, empresas, redes sociais e alianças internacionais.
Essa engrenagem faz com que milhões de pessoas abandonem uma cidadania crítica e coletiva em troca de promessas individuais de sucesso, milagres e prosperidade. O que se vê é a transformação da fé em campo de batalha moral onde a diversidade é demonizada e o outro torna-se inimigo, numa guerra do bem contra o mal sem espaço para diálogo, alteridade ou empatia.
O negacionismo científico, o revisionismo histórico e o fanatismo ideológico ganham força. A religião volta a ser pretexto para calar vozes, perseguir minorias, trocar fatos por mitos. O mesmo se repete em outras regiões do mundo, seja no cristianismo, no islamismo, no judaísmo ou em totalitarismos que negam a religiosidade como elemento cultural componente das civilizações humanas, é preciso reconhecer.
Quando a religião se transforma em máquina de guerra contra o pensamento crítico, o conhecimento é tratado como ameaça e o ódio é exaltado como virtude. Essa mistura explosiva, entre fé manipulada e política ressentida, não é um desvio, mas a estratégia principal de regimes que fingem defender a moral para destruir democracias.
Na ausência do Estado em lugares marginalizados e invisibilizados, pessoas vulneráveis ou mesmo insatisfeitas com suas vidas ao se compararem com influenciadores que vendem vidas fantasiosas, buscam acolhimento e encontram identificação em grupos autoproclamados “escolhidos”, “missionários” e “predestinados” a construir o que acreditam ser um mundo melhor – mesmo que seja através da intolerância, do preconceito e do ódio interpretado como a cólera divina.
Petra Costa sugere que o Brasil estaria sendo usado como um grande laboratório da experiência neopentecostal alinhada aos interesses de políticos e empresários que usam a fé como instrumento de dominação, como acontece há milhares de anos. Só que, dessa vez, não a partir de teocracias ou monarquias absolutistas, mas de democracias fragilizadas num mundo atravessado pela internet, por fake news e tecnologias que não deram conta de superar os fanatismos.
Acontece que, agora, os inquisidores têm wi-fi, estúdios de podcast, milhões de seguidores e financiamento internacional. Não precisam mais queimar hereges: basta cancelá-los, calá-los, ou eliminá-los simbolicamente, como “inimigos de Deus”. E fazem isso em nome da democracia, com discursos ensaiados, paletós bem cortados (ou roupas da moda em cultos que parecem shows) e Bíblias erguidas como armas.
A necessária resistência ao fundamentalismo entre evangélicos precisa ser reconhecida e fortalecida: de Martin Luther King (EUA) e Desmond Tutu (África do Sul), protestantes que lutaram contra apartheids raciais, aos pastores Henrique Vieira (deputado federal do PSOL), Ariovaldo Santos (fundador da Frente Evangélica pela Democracia), Ronilso Pacheco (autor de Teologia negra: O sopro antirracista do espírito), a pastora Lusmarina Campos Garcia (teóloga eco-feminista), Benedita da Silva (deputada federal e ex-governadora do RJ) e Marina Silva (ex-senadora e Ministra do Meio Ambiente), exemplos de caminhos possíveis existem.
Diante do massacre do povo palestino por tropas israelenses e das chantagens políticas de Trump contra o Brasil, entretanto, ver pessoas que se dizem evangélicas e patriotas se enrolarem em bandeiras de Israel e dos EUA, pedindo liberdade, paz e democracia, revela não só um descompasso entre fé e razão, mas a banalização do sagrado, o sequestro da política e o delírio de um povo que, manipulado por profetas do caos, marcha rumo ao abismo acreditando estar salvando o mundo. É um sinal claro e nada profético de que política e religião estão mais do que misturadas e devem, com urgência, ser cada vez mais discutidas para evitar um apocalipse no mundo real.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.











