De um modo geral não somos educados para falar sobre a morte. E nisso a arte, a literatura e a música têm nos ajudado a acolher a finitude da vida em tempos tão desafiadores.
Como é sua relação com a morte? Você consegue encarar o assunto com naturalidade ou tenta fazer de conta que ele não existe ou que não tem relação com você?
Se antes tentávamos fugir do tema, a pandemia do coronavírus escancarou a finitude da vida. A morte está nos noticiários e dentro de casa diariamente, não dá para fugir. É difícil não pensar nos números, nos rostos conhecidos, nas perdas irreparáveis que estamos vivenciando. Aliás, enquanto escrevia este texto, soube da morte de um vizinho muito querido por conta da Covid-19. Fiquei pensando que ele e tantas outras pessoas acometidas pela Covid-19 não estão tendo tempo de se despedir de seus amores.
Falo sobre essa falta de oportunidade de despedia porque, em 2012, tive tempo de me despedir da minha mãe. Isso porque 15 dias antes de morrer, entre um café e uma conversa trivial ela me disse que sabia que seu tempo por aqui estava terminando. Fugi do assunto, mas penso até hoje que eu poderia ter aproveitado a oportunidade para escutar sobre a beleza da vida que ela construiu como mulher, mãe, costureira e ser humano. E o quanto de contentamento tinha no final de sua jornada.
Podia ter escutado o quanto ela amava a vida e o quanto lutou para superar tantos desafios. Mas, nesse caso, quem não estava pronta para essa conversar era eu, e tudo bem!
Para falar sobre esse tema fui atrás da arte, da escrita, e tive um encontro com as palavras do poeta Mario Quintana que diz muito sobre morte e sobre a vida: “Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver. / A vida é tão boa! / Não quero ir embora (…)”. E claro que sabemos que muita gente não quer ir embora.
Já deu para perceber que o papel dos artistas tem sido fundamental durante a pandemia, seja para refletir ou trazer mais leveza e beleza para o dia a dia. Gosto de falar que são respiros necessários para seguirmos em frente. Vale aqui destacar que, desde o início da pandemia, nos emocionamos com tantos encontros musicais nas janelas do mundo inteiro e também o número expressivo de lives dos mais variados segmentos artísticos. O que seria do mundo sem a arte? Não tenho respostas para essa questão!
Encontro no portal entre a vida e a morte
Para me aprofundar nesse assunto, conversei com o ator, diretor, palhaço e pesquisador teatral Esio Magalhães, do Barracão Teatro, que tem feito um mergulho profundo no tema morte para a montagem do seu próximo espetáculo, Credo Quia Absurdum, que será concretizado por meio de uma campanha de financiamento coletivo.
Na história, o palhaço Zabobrim estará no portal entre a vida e a morte, e a partir desse local vão surgir muitas reflexões, questionamentos e dúvidas que podem ser as mesmas de qualquer mortal, como nós.
Para desenvolver o espetáculo, toda a equipe do Barracão Teatro tem feito encontros virtuais com líderes religiosos que estão explicando como suas crenças e religiões encaram a morte.
“A arte nos proporciona um encontro com o outro. E tudo que afeta o mundo, afeta e acaba transbordando na arte. Trazer um palhaço para o portal entre a vida e a morte é um convite para pensar na importância de estar verdadeiramente conectado ao presente e ao aqui e agora”, conta Esio.
Assim como a morte não avisa o dia e nem horário que vai chegar, Esio tem promovido em seu Instagram, @esiomagalhaes, encontros com diversas pessoas para saber como elas encarariam se estivessem no portal entre a vida e a morte. “Essas conversas estão sendo muito potentes. Estão servindo de material para a montagem do espetáculo. Dificilmente paramos para pensar nesse assunto. Será que estamos preparados para morrer hoje, agora? Será que temos arrependimentos para resolver antes de partir? Será que vai dar tempo? E como voltaríamos desse portal?”, destaca Esio se referindo a algumas questões feitas para seus convidados. Já passaram pelo portal Tiche Vianna, Wellington Nogueira, Mauro Fantini, Ariadne Ântico, mas outros ainda virão!
Esio já trabalhou por cinco anos no Doutores da Alegria e dentro do hospital aprendeu muito sobre encontros e despedidas. Ele também já levou sua arte para um campo de refugiados no Saara Ocidental, na África. Essas experiências foram muito importantes para se aprofundar no tema da finitude da vida. “Percebi nesses locais que o remédio cura a doença, mas a arte nutre a alma das pessoas e essa nutrição também tem poder curativo”, diz.
O fato de um palhaço estar diante de um portal da vida e da morte acaba sendo um convite para acessar a nossa vulnerabilidade. “Claro que nesse pacote entram vivenciar a dor, mas também os sentimentos de amor, gratidão, pertencimento”, diz. Ou seja, a história do palhaço carrega muito da nossa humanidade.
Kátia Camargo é jornalista e sente que a pandemia não tem deixado as pessoas se despedirem da vida. Travessia, de Milton Nascimento, embalou este texto.