A história do Irã e de Israel não começa com bombardeios, escudos antimísseis e manchetes de guerra. Vai muito além dos confrontos recentes. O Irã, antiga Pérsia, é uma das civilizações mais antigas do mundo, com raízes que remontam ao terceiro milênio a.C., marcada por impérios como o Aquemênida, que influenciou política, religião e cultura em vastas regiões. Já o povo hebreu tem sua narrativa fundadora associada ao Êxodo do Egito, sob a liderança de Moisés, que teria conduzido sua gente até a terra de Canaã – onde já viviam diversos povos semitas, inclusive os filisteus. Ao longo dos séculos, ambos os territórios viveram ciclos de dominação, resistência e reinvenção, carregando consigo camadas complexas de memória, espiritualidade e poder.
Durante a Idade Média, o Império Persa experimentou momentos de esplendor, enquanto o nascente Império Otomano se consolidava como força dominante no Oriente Médio. A Pérsia manteve relativa autonomia cultural e religiosa, mesmo sob pressão externa. Já os otomanos, muçulmanos sunitas, controlaram por séculos os territórios da Palestina, onde conviviam judeus, cristãos e muçulmanos. Era um Oriente múltiplo, sem as fronteiras rígidas impostas posteriormente pelo colonialismo.
Com a ascensão desses impérios, formou-se um tabuleiro geopolítico onde os conflitos não eram essencialmente religiosos, mas políticos e territoriais, embora muitas vezes disfarçados sob roupagens espirituais.
A Primeira Guerra Mundial foi um divisor de águas. Com a derrota do Império Otomano e a vitória das potências europeias, sobretudo França e Reino Unido, instalou-se um modelo neocolonial no Oriente Médio. A promessa de autodeterminação aos povos árabes foi traída pelos Acordos Sykes-Picot e pelas tutelas impostas pela Liga das Nações. A região, rica em petróleo e estratégica para as rotas comerciais, foi repartida como espólio de guerra. Ao povo árabe restou a marginalização, a fragmentação e a imposição de fronteiras artificiais que não respeitavam etnias, culturas ou religiões. Começava, ali, um processo contínuo de resistência contra a dominação externa e revolta popular cooptada pelo fundamentalismo religioso.
Na segunda guerra mundial, a monstruosidade do holocausto nazista forçou milhões de judeus europeus a buscar refúgio, muitos deles migrando para a então Palestina, habitada majoritariamente por árabes muçulmanos e cristãos. Essa migração em massa, incentivada pelo sionismo político, teve apoio decisivo de potências ocidentais, interessadas em manter uma presença aliada no Oriente Médio. Mas o sofrimento de um povo não deve justificar o massacre de outro. A fuga do genocídio europeu culminou, paradoxalmente, na desapropriação e expulsão violenta de milhares de palestinos, rasgando uma ferida geopolítica ainda aberta.
Em 1947, a ONU aprovou a partilha da Palestina em dois Estados: um judeu, outro árabe. Mas a aceitação parcial da resolução, com o apoio dos EUA e da URSS ao Estado de Israel, acirrou os ânimos. O Estado Palestino jamais foi concretizado. Israel, por sua vez, foi reconhecido em 1948 e, desde então, ampliou seu território por meio de guerras e ocupações.
Desde o início, o projeto israelense mostrou-se expansionista, colocando-se como bastião do Ocidente no Oriente Médio. A resistência palestina, assim como a rejeição de países árabes vizinhos, não tardaria a se manifestar, inaugurando um ciclo de violência e guerras alimentado por interesses externos.
Nos bastidores da Guerra Fria, os EUA passaram a usar Israel como satélite militar e político para garantir sua hegemonia no Oriente Médio. O apoio incondicional norte-americano ao novo Estado contrastava com a demonização de lideranças árabes e com a interferência constante em governos da região. O objetivo principal era claro: controle das rotas de energia e do petróleo. Israel tornou-se uma peça-chave para o imperialismo estadunidense, disfarçado de defesa da democracia, quando na verdade encobria a exploração e o domínio sobre povos inteiros.
O Irã, por sua vez, tornou-se alvo direto da política intervencionista. Em 1953, a CIA e o MI6 britânico organizaram a Operação Ajax, derrubando o primeiro-ministro Mohammad Mossadegh, que havia nacionalizado o petróleo iraniano. Em seu lugar, reinstalaram o xá Mohammad Reza Pahlavi, alinhado ao Ocidente e sustentado pela violência militar. O Irã deixou de ser soberano para se tornar um posto avançado do neocolonialismo ocidental, com elites enriquecidas à custa da miséria popular.
A lógica da guerra econômica se impunha, mostrando que a verdadeira disputa não era religiosa, mas geopolítica e econômica.
Durante o governo do xá, o Irã passou por um processo de ocidentalização forçada, com abertura para o consumo de bens de luxo, repressão de manifestações religiosas e crescente desigualdade. O que parecia modernização era, na prática, expropriação cultural e aprofundamento da dependência político-tecnológica. A população, especialmente as camadas populares e religiosas, via na política dos EUA uma ameaça à identidade nacional, fortalecendo o corrosivo discurso de fanatismo religioso que daria origem, décadas depois, a grupos terroristas no mundo Árabe. O ressentimento crescia, alimentando o que viria a ser uma revolta teocrática contra o imperialismo ocidental.
Durante as guerras de 1967 e 1973, conhecidas respectivamente como Guerra dos Seis Dias e Guerra do Yom Kipur, Israel consolidou sua força militar ao invadir territórios estratégicos como a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã. O Irã, ainda sob o xá, mantinha relações diplomáticas com Israel, fornecendo petróleo ao Estado judeu. No entanto, essa aliança era frágil, baseada em interesses econômicos e militares, e não em afinidades ideológicas. A presença cada vez mais violenta de Israel na região inflamava a opinião pública iraniana, especialmente os setores religiosos.
Em 1979, a Revolução Islâmica derrubou o xá e instaurou uma teocracia antidemocrática liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. O Irã rompeu relações com Israel e EUA, assumindo um discurso anti-imperialista radical. A nova “república” islâmica impôs duras restrições à liberdade individual, retomou práticas de censura e graves violações contra os direitos das mulheres e pessoas homoafetivas, em nome de recuperar a soberania política e ideológica do país. A retórica antiocidental do regime tornou-se um dos principais elementos da geopolítica regional. O Irã passou de aliado estratégico dos EUA a um dos seus maiores inimigos, sendo constantemente acusado de patrocinar o extremismo islâmico.
Na velha ordem bipolar, o Irã manteve laços estratégicos, embora limitados, com a União Soviética, que via na resistência iraniana aos EUA uma oportunidade geopolítica. No entanto, não havia uma aliança ideológica ou política de fato. O Irã teocrático e a URSS marxista-leninista mantinham desconfiança mútua.
Ainda assim, ambos viam o imperialismo estadunidense como inimigo comum. Essa dinâmica complexa mostra que, mais do que um embate entre civilizações ou religiões, o conflito envolvia interesses estratégicos e resistências políticas diante de uma ordem mundial profundamente assimétrica.

Entre 1980 e 1988, o Irã travou uma guerra sangrenta contra o Iraque de Saddam Hussein, que recebeu amplo apoio dos EUA. A guerra Irã-Iraque deixou mais de um milhão de mortos e devastou a economia de ambos os países. O conflito, como tantos outros, serviu aos interesses da indústria bélica ocidental e dos seus aliados regionais, que lucraram com a destruição de vidas e infraestruturas.
Em 2003, os EUA invadiram o Iraque sob o pretexto de eliminar armas de destruição em massa que jamais foram encontradas. O país, então aliado estratégico contra o Irã, foi destruído, mergulhado no caos e na guerra civil, com a destituição, prisão e execução do ex-aliado Saddam Hussein. A lógica era clara: instaurar o medo para justificar intervenções, legitimar golpes de Estado e manter a roda da indústria armamentista girando. O Oriente Médio tornou-se laboratório de experiências neocoloniais, onde a necropolítica se impõe: quem vive, quem morre e quem lucra com isso.
Diante de pressões da OTAN, o Irã assinou um acordo nuclear em 2010, articulado pelo então presidente Lula, com apoio da Turquia, numa saída diplomática para o impasse com o Ocidente. O gesto foi duramente criticado pelos EUA e por Israel, que preferem manter o medo como ferramenta de controle.
A diplomacia do Sul Global, baseada na cooperação e no respeito mútuo, foi desqualificada por quem lucra com a guerra. A tentativa de construir uma ordem mundial mais equilibrada encontrou resistência das potências que se alimentam do desequilíbrio.
A atual política israelense, liderada por Benjamin Netanyahu, tem sido marcada por um projeto abertamente genocida contra os palestinos. Bombardeios sistemáticos, bloqueios humanitários, expansão de assentamentos ilegais e leis segregacionistas desmontam qualquer fachada democrática ou de combate ao terrorismo. A retórica da autodefesa camufla toscamente práticas de extermínio. O sionismo político, longe de representar os valores judaicos originais, tornou-se máquina de guerra a serviço do capital e da geopolítica ocidental. Não à toa existe tanta resistência de parte do próprio povo israelense e de setores da comunidade judaica mundial contra os massacres em Gaza.
A decadência de Netanyahu, assim como de Donald Trump, revela o esgotamento moral e político de líderes que usam o medo e a guerra como estratégia de sobrevivência. Diante da crise estrutural do capitalismo global, apostam na militarização e no autoritarismo escorados no moralismo religioso. Transformam a dor alheia em espetáculo e a destruição em propaganda eleitoral. O fascismo neoliberal mistura livre mercado com militarismo, religião com armas, medo com lucro. Gaza, assim como Teerã e Tel Aviv, viram vitrine de um mundo em colapso ético.
Nos recentes ataques de Israel ao Irã, repetindo a farsa por buscar armas nucleares para justificar o intervencionismo militar, sangue e pólvora continuam se misturando em Gaza, na Ucrânia, em Mianmar, no Sudão, enquanto o fanatismo político-religioso continua ganhando força e espaço em lugares onde a pobreza, a fome e a insatisfação popular com governos autoritários e demagógicos se fundem com novas estratégias de controle de massas envolvendo algoritmos e inteligência artificial.
E se, ao invés de tanques e mísseis, investíssemos em escolas, hospitais, saneamento e alimentos? E se os bilhões de dólares gastos em armas fossem redirecionados para a vida, e não para a morte? Entre Irã e Israel, entre teocracias e democracias de fachada, entre tiranias de veludo e de ferro, há um clamor que ainda pulsa: o clamor da paz, da justiça e da dignidade, e não de especuladores que esperam lucrar vendendo armas ou com o aumento do preço do petróleo. Não existe guerra santa. Só existe guerra suja, travada por quem está disposto a matar (e lucrar) em nome do que jamais entenderá como sagrado: a vida.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, doutorando em Psicologia.











