A ex-prefeita de Campinas Izalene Tiene (PT), de 78 anos, diz se recordar exatamente de como recebeu, 20 anos atrás, a notícia da morte do então prefeito Antonio da Costa Santos, o Toninho do PT, seu cabeça de chapa. Ela relata pressão para assumir o cargo imediatamente e o machismo que teve de enfrentar diariamente por ser a primeira mulher – e a única até hoje- a administrar Campinas.
“Nossa, lembro, e como lembro da notícia da morte dele”, diz. Ela conta que naquele dia 10 de setembro havia uma reunião para discutir o feriado da Consciência Negra, com a presença de diversas pessoas influentes, incluindo Eduardo Suplicy (PT), atualmente vereador na Capital. “O Toninho me pediu para representá-lo porque queria ir à academia, fazia muito tempo que ele não ia. E ele estava muito cansado. Mas mesmo assim ele passou pela reunião para cumprimentar as pessoas”, diz.
Izalene tem gravada na memória uma fala de Toninho naquela passada rápida pela reunião.
“Ele falou uma frase que me assustou muito e que ele nunca tinha falado. Foi mais ou menos assim: ‘Não posso ficar mais, mas se alguma coisa acontecer comigo, a Izalene está preparada para assumir a tarefa’. Eu me assustei e outras pessoas também se assustaram por ele falar isso”, recorda.
Ao final do evento, Izalene chegou em casa por volta das 22h, e recebeu uma ligação de um amigo perguntando pelo Toninho. “Ele me disse que estava rolando uma história de um acidente. Liguei para o Adail (Rollo), presidente do Mário Gatti, perguntei o que estava acontecendo com o Toninho. Ele na hora me disse ‘mataram o Toninho, é isso que aconteceu”, foi assim que recebi a notícia. Coloquei o sapato de volta e pedi para ele me buscar”, rememora. “A gente chegou no local cerca de 15 minutos depois que tinha acontecido, mas já estavam tirando o corpo dele do carro, não tinham isolado nada. Um caos, é um ambiente que me recordo muito bem”, diz.
Izalene conta que tudo foi muito rápido e que o velório já começou naquela madrugada.
“Foram atrás de mim no velório. O Romeu Santini era o presidente da Câmara. Mandou me buscar no velório para tomar posse. Um absurdo. Eu não fui. Era uma pressão absurda e a gente nem estava com cabeça para isso. Quando cheguei no gabinete, eles já estavam todos lá e sentados na cadeira do Toninho. O Santini disse que se eu não tomasse posse ele mesmo tomaria. Eu virei as costas para ele, me recusei e saí. Eu não tomaria posse porque não era o momento, não tinha condições naquela hora. Quando eu ia entrar no elevador, o Lula estava chegando. Foi ele quem botou ordem na casa”, afirma.
Contudo, no dia seguinte, às 11h, ela se tornou prefeita oficialmente. “Eu tive que tomar posse. Fui muito pressionada. Além da morte do Toninho, essa pressão foi muito marcante. Foi uma segunda morte. Fiquei muito abalada com tudo. Isso tira qualquer um da sua condição, do seu equilíbrio”, lamenta.
Crime e investigação
Izalene repete várias vezes que não quer que o crime fique impune, que gostaria que as investigações tivessem sido sérias e que a cena do crime não tivesse sido desmontada tão rápido. “Apenas 40 dias depois entregaram de volta do Chevrolet Vectra. O tiro saiu desse Vectra, que tinha sido roubado seis meses antes. Esse Vectra estava com o grupo do Andinho. Vinte dias antes ele tinha dado uma entrevista e disse que estava sendo extorquido pela polícia”, diz.
“Vinte dias depois dessa entrevista, a polícia de Campinas matou quatro rapazes em Caraguatatuba, sendo três denunciados por estarem no Vectra e o quarto seria um amigo que levou esses três para a casa de praia. A polícia de Campinas, sem contato com o condomínio ou com a polícia de Caraguatatuba, entrou e exterminou eles”, afirma.
Mais uma vez Izalene lamenta que o caso não teve uma investigação séria. “A gente queria uma investigação séria. Nunca o caso de Caraguatatuba foi juntado ao caso em Campinas, mesmo com vários pedidos”.
“A gente fez campanha dizendo que ia acabar com o crime organizado. Hoje está escancarado como o crime organizado está maior e que a milícia está com muito poder. No assassinato de Marielle Franco e do Anderson Gomes, vejo muita relação com o do Toninho. Os tiros partiram de carro, com extermínio das pessoas envolvidas e das provas. Acredito em crime político”, afirma.
Izalene descarta que o crime tenha alguma relação com o setor de transportes. “Não acredito. Nem eu nem ele nunca tivemos nenhum problema com o setor. Fizemos mudanças significativas no transporte em Campinas. Tinham ônibus antigos que a gente conseguiu renovar, trabalhamos com os taxistas, foi um trabalho que considero muito bom. Claro, os empresários sempre queriam aumentos, mas nunca tivemos problemas”, avalia.
Governo e pressões
Questionada se estava preparada para governar, a ex-prefeita reponde que sim. “A gente estava junto no movimento popular, trabalhava com ele na assembleia do povo, eu era a coordenadora do orçamento participativo. Eu estava preparada para governar com a participação popular. Nossa proposta era comum, participativa e de transparência. Em agosto, a gente já tinha entregue o orçamento para 2002. Foi entregue com a presença de mais de 1 mil pessoas que participaram da construção, com demandas e prioridades”, afirma.
Izalene conta que a pressão externa era muito grande.
“A participação popular me preparou para governar e para ter resistência. Toda semana tinha um movimento, um pedido para que tivesse nova eleição. Sempre tinha essa e outras pressões do Legislativo. E uma pressão muito grande da elite campineira, do monopólio da mídia”, afirma.
“Quando eu assumi eu disse que aquilo não era o que tínhamos combinado. No dia seguinte o Correio Popular deu manchete afirmando que eu disse que não estava preparada. Sempre que era algo que eles achavam ruim colocavam meu nome. Quando era coisa boa eles colocavam prefeitura, não atribuíam a mim. Foi muito difícil”, relata.
Izalene foi a primeira e continua sendo a única mulher a governar Campinas. “Eu senti muito, muito o machismo. Muito explícito mesmo, de todos os lados. Até repórteres faziam alguns tipos de perguntas que não faziam para os homens”, diz.
A ex-prefeita diz que contou com apoio de mulheres.
“Tive muito apoio das mulheres porque sempre participei do movimento de mulheres. Na manifestação do dia 7 de setembro eu estava com uma colcha. Ela foi uma manifestação das mulheres. Elas fizeram um plantão na Prefeitura e teceram essa colcha de retalhos. Ela representa o nosso governo. Fizemos um conselho político, que já era a proposta, com representantes dos partidos que estavam no governo, com secretarias de ponta. Governamos com esse conselho político. Tive apoio para governar, mesmo com todas as oposições que nós tínhamos”, detalha.
Perda da esperança
Para Izalene, a maior perda para Campinas com a morte de Toninho, foi a esperança. “Ele fez um resgate da política, de como fazer política, uma política leve, onde as pessoas podiam e gostavam de participar. Ele era muito criativo. Esse jeito deu uma nova cara para a política. A cidade tinha uma esperança. Isso foi uma grande perda”, afirma.
“As pessoas viram que era uma nova forma de fazer política, com muita participação, ouvindo aqueles que estavam mais distantes, que não eram atendidos. Era um governo diferente”, avalia.
A ex-prefeita mantém relação afetiva com a viúva do prefeito e sua filha. “A gente se fala por telefone quando necessário. Hoje a gente se encontra pouco porque elas estão em São Paulo, mas às vezes a gente se encontra em eventos comuns. Eu tive uma relação muito estreita com a mãe do Toninho por muitos anos. A dona Clementina me dava muita força e apoio”, diz.
Depois de terminar o mandato, Izalene voltou a dar aulas no curso de Serviço Social na Unisal e fez curso na Costa Rica, em educação popular.
“Depois me aposentei da faculdade. Em 2012 fui para a Amazônia como missionária. Fiquei seis anos lá. Aprendi muito com os povos indígenas. “Fiquei quatro anos na fronteira Brasil Colômbia, Peru. Depois dois anos em Manaus, onde participei da organização da igreja na Amazônia. Depois voltei e continuo no movimento de mulheres. Participo do diretório do PT e nas comunidades eclesiais de base”, diz.
Trabalho para que mais mulheres ocupem cargos eletivos, no Executivo e no Legislativo, em conselhos, associações de bairros.
Aos 78 anos, solteira e sem filhos, Izalene descarta novas candidaturas. “Não tenho mais idade para isso. Eu trabalho para que mais mulheres ocupem cargos eletivos, no Executivo e no Legislativo, em conselhos, associações de bairros. Acredito que com a participação de mulheres em cargos de direção as coisas mudam muito, melhoram de qualidade”, diz.
“Cada vez mais a sociedade está mais difícil. A gente tinha conquistas nas décadas de 80, 90, ganhos em humanização da sociedade e hoje estamos perdendo. Uma cultura de morte está sendo implantada. Precisa continuar a luta para a uma sociedade mais humana, onde a justiça tenha valor. Acredito na organização popular, educação popular e democracia”, finaliza.