Um dos temas mais delicados e polêmicos da área da saúde é o da judicialização. Este problema complexo envolve não só os pacientes e os juízes que julgam as ações, mas também médicos, famílias, pesquisadores, casas farmacêuticas, promotores e procuradores de Justiça e a sociedade como um todo. Através deste instrumento, os cidadãos ou seus representantes reivindicam seus possíveis direitos não assegurados pelo regramento ou prática do SUS e da saúde suplementar. É uma via absolutamente democrática, mas que pode promover, quando mal aplicado, desequilíbrios orçamentários e financeiros bem como piorar a já importante desigualdade social em nosso País.
Ainda hoje, enfrentamos no Brasil importantes dificuldades de acesso com habituais desabastecimentos de insumos, fármacos, imunobiológicos etc., mesmo já incorporados à saúde pública. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sua política específica de incorporação que envolve as organizações proponentes, a Anvisa, o Conitec e posteriormente, os entes federados responsáveis pela assistência à saúde. Dentro do sistema privado, a aprovação e o registro pela Anvisa devem garantir este acesso. Mas, quando vemos o País como um todo, as dificuldades de acesso permanecem e evidenciam as enormes desigualdades entre as regiões. Importante publicação feita na revista Lancet em 2018 discute estas desigualdades e dificuldades de acesso em 195 países. O Brasil está, infelizmente, mal colocado, no 96º posto deste ranking de acesso e qualidade de acesso*.
As ações judiciais no âmbito da saúde são de diversas ordens: 1- o erro médico (responsabilidade civil e que não trataremos neste texto), 2- as ações por assistência (cobertura) contra planos privados ou gestores do SUS. Nas ações por assistência, temos um enorme leque de possibilidades com materiais e medicamentos, incorporados e não incorporados ao SUS, com e sem registro na Anvisa; tratamentos disponíveis e não disponíveis no SUS e, finalmente, acesso a “desejos” de diversos tipos.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificou e vetou o benefício dos produtos e remédios sem registro na Anvisa.
A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo tem larga experiência neste assunto e tem contribuído para este debate e as possíveis soluções. Ela lista os principais cenários das ações judiciais no Estado de São Paulo: 1- intensa inovação tecnológica, com centros de excelência e referência; 2- forte influência da indústria farmacêutica, com demanda induzida pela oferta; 3- prescrições médicas off label, experimentais, sem registros, etc.; 4- desconhecimento ou desconsideração das políticas públicas; 5- liminares baseadas na urgência médica; e 6- conceitos diferentes entre os envolvidos nas ações do direito e da saúde.
A meu ver, os tratamentos efetivados dentro do “estado da arte médica” são os mais eficientes e econômicos. Quando se faz o melhor definido pela ciência, as falhas nos procedimentos e tratamentos são menos frequentes. Os números de intervenções futuras caem, assim como as complicações, as recidivas e as progressões. Entretanto, o conhecimento que embasa estas decisões deve ser maduro e consolidado.
Não há “moda” na saúde.
Infelizmente, muitas fraudes e casos extraordinários foram denunciados nos últimos 15 anos, gerando prejuízos de milhões de reais (na verdade chega à casa do bilhão) ao erário público derivadas de decisões judiciais. É claro que as decisões foram de boa-fé. A maioria dos magistrados decide pelo que é mais pertinente à pessoa – sempre, claro, dentro da prudência e urgência que cada ação apresenta. Quando pacientes “ganham” as ações, em geral, os governos ou seguradoras possivelmente farão as compras no varejo, com custos, quase sempre, mais elevados. Talvez o lado perverso da judicialização é o que permite ao paciente ’furar a fila’, principalmente dos que não têm possibilidade de arcar com os custos ou acesso a advogados. E isto é quebra de equidade, um dos pilares do SUS.
Os juízes e os tribunais têm trabalhado intensamente para entender e mitigar o problema sem retirar do cidadão o potencial direito ao acesso que ele julgue ter sob certas circunstâncias. O direito democrático de procurar a Justiça é inquestionável e legítimo, principalmente quando esse direito está assegurado na Constituição de um país.
Entretanto, temos que relativizar e, em muitos casos, contrabalançar com os enormes prejuízos à sociedade quando aquilo que é concedido não tem confirmação científica sólida ou é intermediado por ações ilegítimas ou por conflitos de interesse.
É preciso enfrentar todos os lados nessa situação. Estamos e sempre estaremos ao lado de nossos pacientes e da sociedade. Certamente, o Poder Judiciário, em suas várias instâncias, também está. Precisamos encontrar formas justas e estáveis para incorporar e oferecer o nosso melhor dentro de nossas condições orçamentárias, econômicas e cientificamente sustentáveis.
* Fullman et al. Measuring performance on the health care access and quality index for 195 countries and territories and selected subnational locations: A systematic analysis from the Global of Disease Study 2016. Lancet. V.391, n.10136, p.2236-71, 2018.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020