O cenário sensível e amedrontador da pandemia, com perdas de emprego, inflação e momento político delicado, no caso do publicitário Jefferson Rodrigues, 24 anos, é mais difícil de enfrentar do que a própria cegueira. Ele perdeu a visão em 2018, de um dia para o outro, quando concluía o curso de publicidade na Metrocamp. Do ano passado pra cá, quando o coronavírus impôs quarentena, a rotina de Jeff se resumiu na busca de ferramentas para se locomover e se comunicar num mundo pouco comprometido com as dificuldades dos portadores de deficiência.
Neste Setembro Verde, quando três datas sugerem uma reflexão sobre o tema – 3 é o Dia da Pessoa com Deficiência, 21 é Dia da Luta da Pessoa com Deficiência, e 26 Dia Nacional do Surdo -, o jovem publicitário trabalha na Mandinga de Favela (leia texto abaixo) e faz o que é mais importante para sua realização pessoal e profissional: transformar a realidade muitas vezes cruel de quem habita comunidades vulneráveis. Ser um agente transformador. O cara tem uma força surpreendente.
Difícil entender sua cegueira repentina.
Estava ótimo, saúde em dia, nota 9,5 no TCC (Trabalho de Conclusão do Curso), quando, no dia 7 de junho de 2018, um domingo, foi dormir enxergando e acordou cego. Acometido pela Síndrome de Devic, ou neuromielite óptica, uma doença inflamatória do sistema nervoso central, ele permaneceu um mês internado no Hospital de Clínicas da Unicamp.
Quando atinge apenas a parte motora, a Devic dá esperanças ao portador da síndrome, como aconteceu com a mãe do publicitário, que meses depois acordou sem sentir o corpo do pescoço para baixo. Ficou internada por dois meses, também na Unicamp, com o mesmo problema do filho: Síndrome de Devic, mas com os olhos intactos. “Ela voltou para casa em dezembro de 2018, fez fisioterapia, e no ano seguinte voltou a andar”, lembra.
Marilene Rodrigues dos Santos, 44 anos, mulher forte e determinada, acompanhou ainda com mais empenho o dia a dia do filho quando ele perdeu a visão. “Ela foi incrível, me auxiliou em tudo. Sempre teve esse papel importante de mãe solo”, resume Jeff, agradecido. Ele tem apenas uma irmã, Joyce, que atua na área de enfermagem. A jovem contraiu Covid duas vezes, mas felizmente está recuperada, sem sequelas. Devic e Covid transformaram a vida dessa família acolhedora, capaz de driblar crises e sair delas ainda mais fortalecida.
Jefferson aprendeu a ler em Braille, fez curso de mobilidade para ter autonomia nas ruas
Jefferson aprendeu a ler em Braille, fez curso de mobilidade para ter autonomia nas ruas, logo terá aulas com um cão guia, e como sagitariano acelerado que sempre foi, precisou ficar mais tranquilo, até pelo fato de ter encarado ao mesmo tempo a chegada da pandemia, com todos em casa. Constatou que as desigualdades sociais cresceram, as contas subiram, e até sua dieta vegetariana sofreu um abalo, já que os preços dos produtos disparam a cada dia.
Antes de perder a visão, criou um canal de humor no youtube chamado Faz Isso Não. Como cresceu na periferia, com muita frequência era aconselhado a fazer as coisas assim, e não assado, e depois de ter ficado cego a situação piorou, parecia que não restava outra alternativa, a não ser ficar em casa. Mas ele deu a volta por cima e continua criando.
Mandinga de Favela
O publicitário Jefferson Rodrigues mora no Parque Oziel e é um dos dez integrantes da diretoria da agência de comunicação Mandinga de Favela, criada em 2019 por meio de um dos projetos do programa Juventudes, feito entre a Fundação Feac (Federação das Entidades Assistenciais de Campinas) e Instituto Padre Haroldo. Nos últimos meses, depois que o coronavírus deu uma trégua, a agência intensificou os projetos e tem realizado oficinas variadas.
Áudio, fotografia, vídeo e escrita criativa são temas que os jovens da Mandinga dominam bem. Redução das desigualdades é algo importante para essa galera empoderada que se esforça para cuidar e informar o público sobre assuntos que a pandemia tornou mais rotineiros: violência doméstica, feminicídio, perda de empregos e outros.
“Não podemos deixar de sonhar e fazer nossos planos” Bruna Evaristo
Quem também integra a Mandinga de Favela é Buna Evaristo, 26 anos, que mora no São Domingos, região do Campo Belo. Segundo ela, “a agência é plural, criativa e precisa do encontro de pessoas para potencializar nossa vontade de transformação”. Foi necessário nesse período desafiador de isolamento, como comenta Bruna, “entender questões de saúde mental, se apoiar e se fortalecer, mesmo nos mantendo distantes, para dar continuidade ao trabalho”.
“Não podemos deixar de sonhar e fazer nossos planos”, diz Bruna, por isso, no ano passado, quando todos passaram a trabalhar home office, precisaram também adaptar os podcasts do Empoeme-se, que tinha por meta divulgar um poema por dia. O projeto reúne jovens de várias regiões de Campinas, como Campo Grande, Satélite Íris, Parque Oziel, Campo Belo e outras comunidades. Antes da pandemia, as gravações, edição e divulgação eram feitas no estúdio localizado no Quilombo Urbano OMG (Oziel, Monte Cristo e Gleba B).
A série de podcasts é uma das ações do ComunicaAí, um dos projetos do programa Juventudes, iniciativa da Fundação Feac com o Instituto Padre Haroldo e o Centro de Referência Quilombo Urbano OMG, localizado no Parque Oziel. Os jovens declamam os próprios poemas e também recitam outros de autores famosos, como Mario Quintana e Fernando Pessoa.
O pessoal da Mandinga também produziu, junto com os coletivos REAJU (Rede Articula Juventude) e Coletivo Margem Cultural, a primeira edição da Virada AfroCultural de Campinas, viabilizada por meio do edital da Lei Aldir Blanc, da Secretaria de Cultura de Campinas.
No Facebook da Mandinga de Favela, Bruna Evaristo se apresenta assim: “Eu sou a Bru. Tô na Mandinga para fomentar a cultura da periferia, para construir uma nova produção cultural, uma produção mais representativa. Aqui na Mandinga trampo como coordenadora de interesses internos e no setor de marketing. Aqui tenho liberdade pra ser quem eu quiser, imaginar e saber que é possível (…). A música, a arte, a cultura salva vidas! Salvou a minha diversas vezes!”.
Muito prazer, Jeff e Bru, foi ótimo falar com vocês, aprendi pra caramba. Sucesso!
Janete Trevisani é jornalista – Mande sugestões pelo e-mail [email protected]