Síntese de um ano conturbado, marcado pela esperança por dias melhores e os muitos obstáculos até alcançá-los, o mês de dezembro de 2022 trouxe um gosto amargo à gigante nação brasileira que sonhava com o hexa na Copa do Mundo. Vencida nos pênaltis pela seleção da Croácia (posteriormente derrotada pela Argentina), a seleção brasileira permite analisar, ainda que de forma simbólica, vários aspectos representativos do momento vivido em nosso país.
Há quem diga que o entretenimento esportivo é nada mais que a velha política do pão e circo, financiada com dinheiro de exploração social e corrupção, muitas vezes, para desviar o olhar do povo de problemas mais graves, como a fome e a violência, enquanto empresas privadas e o grande empresariado lucram com o espetáculo.
Por outro lado, a história de vida de muitos jogadores que vestem a camisa-canarinho serve de inspiração para a juventude periférica, que vê no esporte a chance de ascensão socioeconômica e uma brecha para escapar, ainda que momentaneamente, dos enormes desafios que enfrentam cotidianamente.
Do ponto de vista político, não há dúvidas de que a competição entre seleções nacionais, assim como nos Jogos Olímpicos, é também campo de disputa por hegemonia, manutenção, resistência e subversão de valores culturais.
As contradições de realizar um evento global no Catar, país ultraconservador, destacaram muito bem a conexão indissociável entre esporte, cultura e política. Do nazismo ao fascismo, durante a Guerra Fria e até na ditadura civil-militar no Brasil, o esporte serviu tanto como palco de protestos por direitos humanos, democracia e liberdade, quanto para apropriação de símbolos nacionais e condicionamento das massas ao ufanismo, um patriotismo perverso que deixa de lado o espírito esportivo e abraça o fanatismo. O sonho da superação coletiva e da celebração da vitória, quando corrompido, se converte num desejo sombrio de derrotar, perseguir e destruir o outro.
Em meio a manifestações golpistas, vandalismo e atos criminosos de radicais de extrema-direita que não reconhecem a vitória democrática de Lula nas eleições de 2022, o posicionamento público do camisa 10 da CBF, Neymar Jr., em apoio ao presidente derrotado pelo voto popular, Jair Bolsonaro, foi mais um sintoma dessa profunda conexão entre os esportes e o imaginário coletivo, incluindo ídolos, desejos, símbolos, expectativas e ilusões.
Embora inseridas em diferentes contextos e marcadas por suas particularidades, milhões de pessoas se sintonizam ao cantar o hino em uma só voz, mesmo que em tom de protesto, torcer e sonhar. Tornando-se parte dessa equipe, desse time, a torcida se conecta ao poder simbólico-representativo de ídolos que criam como produtos e produtores dos próprios sonhos.
Há duas décadas, em 2002, ano do pentacampeonato da seleção brasileira, Lula era eleito presidente do Brasil pela primeira vez. O sonho começava a se tornar realidade para muitas pessoas que, nos anos seguintes, finalmente encontravam oportunidades para vencer a fome, ter acesso à educação e saúde, conquistar uma casa própria, melhores condições de vida e, por que não?, sonhar ainda mais alto.
Todavia, como nenhum sonho dura para sempre, a realidade na década seguinte veio não só com as derrotas da seleção verde-amarela nas Copas posteriores (incluindo o traumático 7×1 em 2014), mas principalmente com o desgaste político e econômico marcado pela corrupção público-privada, pelo desemprego, pelo endividamento, por crises internacionais, pela polarização política e pela intolerância, principalmente depois do golpe contra Dilma em 2016.
Em 2022, a chamada “geração Neymar”, equipe liderada pelo craque que disputou também as Copas de 2014, 2018, ilustra como talento, competência e força de vontade podem se ofuscar por individualismo, vaidade e incapacidade de lidar com frustrações.
Extrapolando o sonho pelo hexa este ano, é verdade que viver sem sonhar pode tirar o brilho da existência, mas viver em um mundo de faz-de-conta é ainda mais perigoso. Negar a realidade e iludir-se com mentiras e delírios têm se mostrado o caminho fatal para crises severas como na Síria e na Ucrânia, catalisadas por fanatismo e alienação, onde só se realizam os sonhos dos tiranos e perversos.
Se a derrota no Catar foi um banho de água fria para algumas pessoas, é preciso despertar e entender que, enquanto uns podem se dar ao luxo de continuar vivendo o sonho de fartura e ostentação, muitos vivem o pesadelo da fome, da violência e das privações. Ficar deitado eternamente em berço esplêndido e escorar-se no sonambulismo das teorias da conspiração ou na arrogância de esperar por alguma intervenção divina para satisfazer sonhos egoístas tampouco resolvem as crises de quem acorda de madrugada para sustentar a família e fazer o país funcionar.
Imortalizada pela voz de Elis Regina, as palavras de Belchior já diziam que “viver é melhor que sonhar”.
Emicida, um dos maiores rappers do Brasil contemporâneo, canta que “quem sonha junto, sobe junto”. Que sejam nossos sonhos, então, sonhos generosos, de cooperação e superação das mazelas, inspiração para transformar, acordados e conscientes, as realidades em que vivemos.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.