O período entre agosto e setembro deste ano, deverá se transformar numa espécie de restauração para o pessoal do Barracão Teatro – grupo que autodenonima “nômade” instalado no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, e que sofreu a mais dura provação em seus 23 anos de vida, imposta pela pandemia do coronavírus.
O grupo – cuja vocação é difundir a arte teatral por diversos e diferentes territórios do país, como eles próprios se definem – teve de se recolher. Sem público, ficou também sem espetáculos e só não fechou as portas pela obstinação de artistas, produtores, encenadores e apoiadores.
Mas agosto está chegando e com ele a expectativa de que o Barracão volte à cena; com um espetáculo inédito, modelado a dezenas de mãos e concebido de forma coletiva. “Se não for em agosto é no começo de setembro”, diz Tiche Vianna, uma das fundadoras do grupo, ao lado de Esio Magalhães.
E a volta promete ser em grande estilo. O grupo está montando um espetáculo de criação e produção coletivas, batizado de Credo Quia Absurdum* – uma história que pretende discutir a intolerância religiosa, uma das facetas mais cruéis dos tempos de obscurantismo que se vive no Brasil.
Na história, o palhaço Zabobrim (vivido por Esio) engasga com uma bolinha de ping-pong e chega ao portal entre a vida e a morte. Ali, se vê diante de suas certezas e dúvidas a respeito da própria existência, num possível dia do seu próprio juízo final. Imaginando estar na porta do céu e sabendo-se um pecador inveterado, ele começa a rezar desesperadamente para se salvar.
Porém, ao contrário do que esperava, surgem vários seres imortais representando diversas religiões, crenças e filosofias. Estes imortais serão apresentados pelas múltiplas especialidades dos números circenses, como acrobacia mão a mão, faixa aérea, bambolê, pixel, contorcionismo e lira.
Tiche Vianna conta que o espetáculo está sendo montado de forma inteiramente coletiva e muitas vezes à distância. Os artistas convidados receberam uma espécie de roteiro e começaram a produzir esquetes que se adequassem à ideia. O grupo e Esio vão, então, lapidando a proposta até chegarem uma cena que pode ser a definitiva.
“A gente faz uma dramaturgia que vai nascendo junto com a cena. Como dizem uns amigos nossos, nós desenhamos e pintamos ao mesmo tempo”, compara Tiche.
Com o distanciamento exigido pela pandemia, o processo de criação; de elaboração das cenas e dos ensaios ocorreram de forma absolutamente inusual. Parte dos ensaios ocorrem dentro do barracão, mas as etapas anteriores se deram por meio de encontros virtuais – com debates e discussões sobre as melhores soluções para o enredo. A partir desses encontros à distância é que foram surgindo as principais ideias de cenas.
O processo de trabalho exigiu ainda uma espécie de revezamento entre todos os artistas. O palhaço ensaiava no palco do barracão as cenas elaboradas nas conversas virtuais e os demais assistiam aos ensaios por meio de video. E será assim até que todos tenham condições de se juntar presencialmente no palco.
De acordo com Tiche Vianna, o tema foi uma consequência natural da tragédia que se abateu sobre o planeta – e especialmente o Brasil – com o surgimento do vírus.
“É claro que tudo isso que aconteceu, nos influenciou profundamente. Todos os dias temos tido notícias de morte. De gente que morreu e de gente que escapou da morte”, diz ela. “Então, esse tema – entre a vida e a morte – veio a partir de tudo o que começou a aparecer desde que a pandemia se instaurou”, explicou.
A forma encontrada pelo grupo para tratar assunto tão difícil foi também uma espécie de expiação.
“Depois disso tudo, sobre o que a gente vai falar? E como a gente vai falar? Como a gente vai dialogar com uma plateia que está sofrendo?”, questionam-se Tiche e o restante do grupo.
“A gente entendeu que tinha de fazer coisas que fossem mais lúdicas, que pudessem construir mais de ilusões. Mas a gente não trabalha com ilusões que distraiam as pessoas da realidade, que as façam esquecer da realidade. O desafio era: como falar da realidade, sem piorar a dor que essa realidade já está provocando?”, disse Tiche.
“Então a gente concluiu que o circo, o teatro cômico , poderia trazer muito mais esse olhar. Um olhar mais calmo sobre a relaidade e ao mesmo tempo mais lúdico. Até para que a gente possa atravessar essas coisas que estamos vivendo com menor dor”, concluiu.
Credo Quia Absurdum* deve estrear entre o final de agosto e o começo de setembro, lá no Barracão Teatro – que fica na Rua Eduardo modesto, 128 – Vila Santa Izabel, em Barão Geraldo. A expectativa de Tiche Vianna e o pessoal do Barracão aposta que até o final deste mês, a maioria da população campineira já tenha tomado ao menos uma dose da vacina.
O espetáculo , diz ela, só será possível, graças a uma intensa campanha de financiamento coletivo – que contou com contribuições de empresas, de pessoas físicas que se dispuseram a ajudar e também a leis de incentivo.
Explicação:
*_credo quia absurdum_
Expressão apócrifa usada para indicar que a fé, para crer, não necessita de se compreender, erroneamente atribuída a Tertuliano (De Carne Christi) e também a Santo Agostinho. Locução latina que significa “creio porque é absurdo”. Absurdo no sentido de ser contrário à razão.
A travessia
Quando em março do ano passado o grupo teve de suspender as atividades por conta do surgimento do vírus da Covid-19, o pessoal do Barracão Teatro não tinha ideia do problema que acabara de surgir.
“Quando disseram pra gente: Olha. Vamos ter fechar como medida de prevenção, essas coisas, achamos que seria uma coisa transitória; coisa de um mês”, disse Tiche Vianna.
“Num primeiro momento ficamos em suspensão, mas depois, quando a gente percebeu que a situação era muito mais grave, pensamos. Meu Deus! O que é que nós vamos fazer?”, pensou Tiche.
O grupo passou então a buscar alternativas. Se viu obrigado a reduzir todas as despesas; renegociou o contrato com a proprietária do espaço, rediscutiu as relações de trabalho com os artistas e começou a aceitar qualquer tipo de trabalho que aparecia em que se pudesse produzir ou ser feito de maneira on-line.
Foi assim que surgiram propostas de cursos, palestras, debates. “Pagos muito aquém dos valores necessários, mas para nós já servia, porque a gente precisava tirar recursos de algum lugar, né”, argumentou a fundadora do grupo.
“Mas o que nos livrou mesmo foi o auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc. Foi isso que deu uma garantida na permanência do Barracão, inclusive com atividades que podem se desdobrar e depois a gente pode continuar trabalhando com isso, refazendo caixa”, disse.
Território Cultural
“A primeira coisa que a gente pensou quando soube que teria de fechar por tempo indeterminado foi: vamos fechar as portas em entregar o barracão. Mas depois, concluímos que não conseguiríamos fazer isso. Estamos lá há 23 anos. Esse espaço é muito mais que casa alugada pra gente fazer coisas. Aquilo é um território cultural”, concluiu Tiche.
“Abrir mão do barracão é abrir mão de uma relação que a gente estabeleceu com aquela comunidade de Barão Geraldo, com os bairros, com a cidade como um todo, porque vem gente de todo lugar assistir aos nossos espetáculos”, avaliou.
“Você não entrega 23 anos de trabalho contínuo, com conquistas. Nós conseguimos, por exemplo, implantar um projeto com uma escola pública que fica em frente ao barracão”, conta Tiche.
“Houve intervenções dentro da escola, na praça, nas ruas, no próprio barracão. Criamos, inclusive, uma nova relação do bairro com a própria escola. Houve acolhimento. Uma sensação de pertencimento a algum lugar. Isso nos dá a dimensão do que significa ser um território de cultura”, finalizou.