Tenho grande apreço em escrever sobre este tema. Aos quatro anos de idade sofri um acidente doméstico com álcool líquido e tive uma extensa queimadura. Estou falando dos anos 50 e todos podem imaginar que sou um sobrevivente tendo em vista as limitações da medicina e seu suporte dessa época. Mas o fato me marcou de maneira definitiva de modo que quando assumi cargos de grande relevância dentro da gestão pública da Saúde como o de secretário estadual e posteriormente, municipal de Campinas, procurei apoiar e fomentar programas de prevenção e cuidado aos pacientes com queimaduras.
Nos anos 90, como secretário estadual da Saúde, tentei desenvolver um projeto em todo o estado que foi parcialmente vitorioso. Pudemos recuperar e instalar algumas unidades na cidade de São Paulo e também no Interior. Entretanto, não conseguimos fazer esta unidade em Campinas. Antes de falarmos do atual momento em nossa cidade, gostaria de pontuar alguns fatos fundamentais a este problema de saúde pública e que se acentuou durante a pandemia do novo coronavírus (SarsCov2) pelo retorno do uso doméstico do álcool 70%. O álcool 70% é muito ativo como agente saneante, mas muito perigoso em utilização doméstica por ser altamente inflamável. Ao contrário, o álcool 40% é muito seguro e regularmente aprovado pela Anvisa fora do período da pandemia. Passada a pandemia, o álcool 70% deverá ser novamente proibido.
Queimadura promove sequelas graves e é um acidente extremamente traumático. As queimaduras resultam em grandes reflexos clínicos, sociais e psicológicos nos pacientes afetados com repercussões para toda a vida.
Além dos tratamentos da fase aguda, as queimaduras exigem longa recuperação e reabilitação. Os traumas sobre os tecidos de revestimentos de todo o corpo humano por queimadura podem ser graves e irreversíveis. Dependendo da extensão das queimaduras, a mortalidade pode ser muito elevada. Os agentes causadores de queimaduras são inúmeros e incluem agentes térmicos (os mais frequentes), químicos, elétricos e radioativos. A Sociedade Brasileira de Queimaduras relaciona os líquidos aquecidos, combustíveis inflamáveis, chama direta, superfícies aquecidas, eletricidade, radiação solar, agentes químicos e radioativos, como os mais frequentes agentes causais.
Voltando à realidade de nossa comunidade, verificamos uma alta concentração de ocorrências em Campinas. Dados obtidos a partir de 2008 mostram que a cidade é responsável por cerca de 5% de todos os casos do Estado de São Paulo e sem tendência de queda.
Neste período de observação, Campinas teve entre 150-200 casos de internação por ano.
Quando cheguei à Secretária Municipal de Saúde de Campinas, pude confirmar entre 75 a 80 casos por mês dentro do sistema público de saúde, sendo que cerca de 10% eram casos graves e que exigiam internações. O certo é que vivemos em uma cidade complexa, com indústrias, grandes empreendimentos, fábricas etc. Temos ainda grande circulação de pessoas tanto nos transportes terrestres como aéreos. No contexto regional e metropolitano, Campinas concentra 40-45% de todos os casos de internações e, infelizmente, de mortes por esta causa.
Com o apoio de empresas e decisiva participação da Santa Casa de Campinas, o Centro de Tratamento de Queimaduras (CTQ) de Campinas foi planejado e construído. Hoje, esta Unidade de Saúde funciona plenamente e é mantida em grande parte pela Municipalidade e com um pequeno aporte de recursos do Ministério da Saúde. Durante o período de pandemia, os atendimentos cresceram quase 40% em relação aos anos anteriores. Os acidentes domésticos, principalmente pelo álcool 70%, foram os maiores responsáveis por este incremento.
As crianças e os “churrasqueiros” foram as grandes vítimas deste período.
O dia-a-dia de uma unidade de tratamento de queimaduras se assemelha a de unidades semi ou intensivas (UTIs). Há uma participação fundamental e multiprofissional com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas, terapeutas ocupacionais, serviço social, dentre outros. Neste centro são realizados atendimentos à população; pesquisas e educação em todos os níveis com participação ativa das universidades; ações de reabilitação e ações de prevenção e conscientização de riscos.
Considero que apesar de não muito falado, o cuidado ao paciente queimado é crítico e altamente especializado.
Hoje temos à disposição de nossa comunidade uma unidade moderna e resolutiva. A cooperação entre entes públicos, universitários, filantrópicos e da atividade produtiva possibilitou que chegássemos a este êxito. Importante finalizar dizendo que esta é uma unidade acessível a todos os nossos pacientes. Temos assim, equidade e universalidade de acesso premissa fundamental do SUS.
Carmino Antonio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de Saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020