Entre fevereiro de 2022 e outubro de 2023, ocorreram 21 episódios de violência extrema em escolas brasileiras, contra 15 casos em todos os 20 anos anteriores. Em 20 meses, foram registrados 58,33% do total de casos. Os dados fazem parte do relatório “Ataques de violência extrema em escolas no Brasil – causas e caminhos”, elaborado sob a coordenação da professora da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, Telma Vinha.
O mapeamento abarca 22 anos – desde o primeiro ataque reportado em uma escola do país, em agosto de 2001, na Bahia, até outubro deste ano. Nesse período, foram 36 ataques cometidos por 39 estudantes e ex-estudantes, em 37 escolas, que resultaram em 40 mortes e 102 pessoas feridas. Das 37 escolas atingidas, 30 eram públicas (17 estaduais e 13 municipais) e sete, particulares.
Todos os autores dos ataques eram do sexo masculino e em sua maioria, brancos (há apenas duas exceções). E 76% deles eram menores de idade. Destes, 46,15% tinham entre 13 e 15 anos. A maioria das vítimas eram mulheres. Entre as vítimas estudantes, 59,43% eram do sexo feminino.
Das 40 vítimas fatais, 17 eram meninas e 12, meninos. Foram mortas, ainda, quatro professoras, uma coordenadora e uma inspetora. Cinco autores dos ataques cometeram suicídio
A pesquisa mostra, no entanto, não ser possível inferir que os responsáveis pelas agressões buscaram matar mais mulheres. A professora lembra que 80% dos profissionais das escolas brasileiras são do sexo feminino e pode ser que esteja nesse fato a explicação para o perfil das vítimas.
“Apenas dois casos foram claramente motivados por questões de gênero”, diz o relatório.
Todos os autores dos ataques tinham uma percepção negativa sobre a escola, relatando vivências de sofrimento nesse espaço. O relatório informa ainda que a maior parte dos autores tinha ligações com a subcultura extremista, interagindo com perfis, subcomunidades e comunidades virtuais mórbidas e/ou consumindo conteúdos de ódio, traço cada vez mais presente nos últimos anos.
Possíveis causas
Vinha diz que vários fatores, relacionados entre si, explicam um aumento tão acelerado no número de casos. “O primeiro é que esses adolescentes interagem com comunidades mórbidas, que estão cada vez mais na superfície da internet”, afirma.
“Antes, os jovens precisavam navegar na deep web para ter acesso a conteúdos prejudiciais, violentos e extremistas. Atualmente, esses conteúdos são facilmente encontrados em plataformas e redes sociais.”
A pesquisadora diz que a pandemia também teve seu papel nesse fenômeno. Vinha recorda que, devido à necessidade de observar o isolamento social, houve uma imersão intensa no universo online e, para muitos, uma interação frequente com conteúdos nocivos. “Além disso, o isolamento prolongado contribuiu para o adoecimento psíquico.”
A professora afirma ainda que, nos últimos anos, houve uma ampliação do ecossistema de fomento à violência: um ambiente de ódio formado por lideranças, portais de comunicação e redes sociais com discursos conspiratórios, com conflitos e com inimigos a serem combatidos. Essas lideranças, esses portais e essas redes sociais mobilizam muitas pessoas.
“Esses discursos são interpretados por alguns como apoio velado a agressões e ataques contra inimigos, percebidos como se isso estivesse dando autorização ou permissão para agir”, explica a professora.
Inúmeras instituições de ensino, avalia a pesquisadora, evitaram discutir temas atuais e questões da política, filosofia, sociologia e história, afetando a formação dos estudantes e o desenvolvimento da sua compreensão de mundo, contribuindo para que esse adolescente se torne ainda mais vulnerável a discursos violentos e sedutores.
Vinha diz, por fim, que a flexibilização da legislação sobre as armas e o aumento da vulnerabilidade social também ajudam a explicar o aumento no número de casos de agressão.
Histórico
O estudo lembra que o primeiro evento de violência extrema com evidências de radicalização online ocorreu em Realengo (RJ), em 2011. Desde então, até outubro de 2023, aconteceram 32 ataques, sendo que 25 deles apresentaram indícios desse tipo de interação no ambiente virtual.
“Os episódios que vão até 2010 decorreram de ressentimento e vingança. Todavia, com o passar dos anos, além de tais sentimentos, a maioria também passa a ter a intenção de matar a maior quantidade de pessoas possível”, aponta o relatório.
Para isso, continua o documento, recebem orientações, acessam materiais que ensinam a realizar massacres e preparar armas artesanais, fazem um planejamento cuidadoso e buscam adquirir armas de maior letalidade.
A principal arma usada nos episódios de violência extrema foi a arma de fogo, seguida de faca (arma branca) e do coquetel molotov (bomba caseira). Mas há casos envolvendo o uso de machadinha, lança-chamas artesanal, marreta e martelo. Em 17 casos, os autores dos ataques carregavam consigo mais de um tipo de armamento.
Recomendações
Nas recomendações de caráter geral, o relatório listou 11 pontos, entre os quais a necessidade de um controle rigoroso sobre as armas de fogo e munições e a proibição de academias e institutos mirins militares em que crianças e jovens são colocados para manusear réplicas de armas ou armas de verdade.
O relatório chama a atenção também para a necessidade de aprovação de projetos de lei que visam a uma maior regulação e responsabilização das plataformas digitais com relação aos conteúdos de ódio, violência, crimes e condutas autodestrutivas e de risco, que acabam ferindo a proteção integral e prioritária de crianças e jovens conforme prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O estudo recomenda ainda a responsabilização de quem divulga pela primeira vez vídeos dos ataques e de depoimentos/manifestos produzidos pelos autores das agressões, além da implementação de um sistema de registro de ataques ocorridos e dos casos evitados pela polícia. A ideia é montar uma plataforma unificada de informações sobre esse tipo de violência para o desenvolvimento de estudos e monitoramento.
O relatório faz ainda uma série de 14 recomendações referentes à segurança, proteção e promoção da qualidade da convivência nas escolas. Diz, por exemplo, ser preciso investir na expansão e no fortalecimento da rede de atendimento psicossocial e na atuação conjunta e articulada com a Rede de Proteção.
Recomenda também uma maior aproximação entre a escola e a comunidade, a construção de um ambiente de atenção e cuidado pelos adultos, a melhoria da qualidade das relações, a implementação de um sistema de apoio entre os estudantes, o fortalecimento de espaços de participação, escuta e mediação de conflitos e a implementação de assembleias e de práticas restaurativas.
Além disso, avalia ser necessário promover a convivência democrática e cidadã – tanto no âmbito escolar quanto nas redes virtuais – como política pública integrada às demais políticas educacionais e sociais.
No final, a coordenadora do estudo faz um alerta, afirmando que as propostas mencionadas no relatório não serão efetivadas sem a implantação de uma política pública de convivência capaz de fomentar ações coordenadas e complementares em médio e longo prazo.
Além de Vinha, participaram da elaboração do relatório os pesquisadores Cléo Garcia, Cesar Augusto Amaral Nunes, Danila Di Pietro Zambianco, Simone Gomes de Melo, Talita Bueno Salati Lahr, Elvira Maria Portugal Pimentel R. Parente, Beatriz Fogarin e Vitória Hellen Holanda Oliveira. Todos os autores dessa pesquisa são integrantes do Grupo Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública (Geddep) do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp (IdEA) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral (Gepem) da Unicamp e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). (Com informações da Unicamp)