“Você não tem noção do tamanho do milagre”. Foram essas as palavras que a educadora campineira Marta Ral Moreira, de 42 anos, ouviu com maior frequência dos médicos e enfermeiros que acompanharam de perto o drama particular de sua batalha pela vida.
Acometida pelo novo coronavírus no início deste ano, Marta precisou ser internada e ficou entubada durante 25 dias, mas superou as complicações da doença com muita resistência e bravura. “Foram os piores 40 dias da minha vida”, define a paciente, em referência ao tempo total de internação. Ela saiu do hospital há cerca de quatro meses e, desde então, vem enfrentando um árduo processo de recuperação para retomar as atividades cotidianas.
Com comorbidades associadas à obesidade, Marta tomou a primeira dose da vacina AstraZeneca no dia 31 de maio. A segunda dose deve ser aplicada neste próximo mês de agosto.
Lutando contra as sequelas, Marta Moreira espera retornar à sala de aula o mais breve possível neste segundo semestre. “Eu ainda estou tentando processar tudo o que aconteceu, mas não vejo a hora de voltar, pois gosto muito do meu trabalho”, declara a professora de Educação Infantil da Escola Municipal Prof. José Villagelin Neto, no bairro Nova Campinas.
Saiba mais sobre essa história de superação
No começo de fevereiro, mesmo trabalhando em sistema home office e cumprindo as regras de distanciamento social, Marta Moreira não escapou da contaminação por Covid-19. “Eu estava saindo somente para fazer compras”, conta Marta.
Os primeiros indícios do contágio foram as perdas do paladar e do olfato. “Liguei o sinal de alerta quando parei de sentir o cheiro forte da árvore de mirra que tenho em casa”, aponta Marta, que mora em uma chácara no bairro Recanto dos Dourados, em Campinas. Ela vive com o marido comerciante e o filho de oito anos, que também foram infectados durante o surto do círculo de convivência.
Ao contrário dos familiares, que tiveram reações brandas e se recuperaram sem necessidade de hospitalização, Marta desenvolveu quadro preocupante de tosse, cansaço, falta de ar e diarreia. Com o agravamento dos sintomas, se dirigiu ao Centro de Saúde Carlos Gomes, posto médico mais próximo de sua residência. Devido às condições precárias da unidade, que funciona em um prédio antigo e tombado, Marta recebeu o aviso de que o atendimento a pacientes com Covid estava sendo realizado no salão de uma igreja no bairro Chácara Gargantilha.
Ao chegar lá, no entanto, Marta foi orientada a se encaminhar para o Hospital Mário Gatti. “Só me internaram na quarta vez porque diziam que os parâmetros estavam normais”, revela Marta Moreira, que foi internada e imediatamente entubada no dia 12 de fevereiro, pouco antes da chegada do Carnaval.
“Cheguei por volta das 10 da manhã, mas só consegui ser internada à noite porque o atendimento estava bem complicado por causa da sobrecarga. Com apenas 15 minutos de internação, já me entubaram. No dia seguinte, ligaram para o meu marido avisando que eu havia sido transferida para o Hospital Irmãos Penteado”, relata Marta.
Na UTI, Marta Moreira sofreu sérias intercorrências, como parada respiratória e infecção pela superbactéria hospitalar KPC, o que causou severas complicações como febre alta, anemia e paralisação total dos rins, necessitando ser submetida ao procedimento de hemodiálise.
Apesar das inúmeras adversidades, passando por uma tentativa frustrada de extubação, Marta despertou do estado de coma no dia 10 de março. Os dias anteriores foram marcados por chamadas de vídeo organizadas pela assistente social com a participação de familiares próximos, na esperança de algum impacto psicológico ao escutar vozes conhecidas.
“Durante o período de inconsciência, as coisas se misturaram na minha cabeça com histórias malucas e surreais”, recorda Marta
Durante o período de inconsciência, Marta Moreira revela que a realidade se confundiu com a ficção dentro de sua mente. “Como sou uma pessoa muito ligada às artes e gosto bastante de cantar, ler e assistir a seriados e filmes, tive vários sonhos enquanto estava desacordada. As coisas se misturaram na minha cabeça com histórias malucas e surreais. Em uma delas, eu era uma agente secreta do FBI”.
Confusa ao acordar após quase um mês, Marta Moreira se deparou com um ambiente de muita tristeza e solidão dentro do hospital. “Eu estava muito desorientada e debilitada, então tive que assimilar o que estava acontecendo de verdade e me relocalizar no mundo, pois não sabia quanto tempo tinha passado. A maioria dos pacientes estava entubada, inclusive um senhor depois veio a falecer do meu lado. Também houve um dia em que caiu a energia e os enfermeiros tiveram que correr para usar equipamentos manuais”, revive Marta.
Eles brincavam que alguém tinha ligado a minha tomada e me apelidaram de Marta Furacão, pois eu voltei com tudo”, brinca Marta
O despertar da paciente em condição crítica surpreendeu a todos os médicos e enfermeiros, que consideraram um milagre a sua retomada de consciência. “Eles diziam que era muito estranho estar conversando comigo porque não era uma situação normal, parecia até assombração. Eles brincavam que alguém tinha ligado a minha tomada e me apelidaram de Marta Furacão, pois eu voltei com tudo”, aponta Marta.
Mesmo enfraquecida e com 20 quilos a menos, paralisia de movimento dos membros, ferida profunda em uma das pernas, parte do couro cabeludo comprometida e escara sacral de quarto grau, o estágio mais grave, Marta Moreira recebeu alta hospitalar no dia 23 de março. “Quando me levantaram da cama para colocar na cadeira de rodas, não consegui me sustentar nos braços do enfermeiro e desmaiei. Mesmo com tontura, eu falava que estava bem para poder ir embora. Eu recebi alta depois das dez da noite e cheguei em casa perto de uma hora da manhã porque o carro andava a uma velocidade de 30 km/h, senão eu passava mal”, recorda-se.
“Dá até um aperto no coração de lembrar porque foi muito duro e angustiante”, afirma Marta
Ao deixar o hospital, Marta Moreira passou a contar com apoio total do Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD). “Quando cheguei em casa, tinha que ficar 100% do tempo na posição prona, ou seja, de barriga para baixo. Gradualmente, passei a ficar sentada duas horas por dia e tomar sol do lado de fora da casa. Procurei fazer tudo o que precisava, tomando banho na cama e sacrificando um pouco da alimentação, para que a recuperação fosse mais rápida”, explica.
Com o atendimento domiciliar encerrado no último mês de junho, Marta Moreira prossegue a recuperação com visitas ao posto médico e ao Centro de Referência em Reabilitação (CRR), em Sousas. Com ajuda de um andador, voltou a caminhar há cerca de um mês. “Minha recuperação, segundo os profissionais de saúde, vem sendo muito boa. Normalmente, a escara costuma levar seis meses para fechar, mas já está quase cicatrizada”, exemplifica Marta. “Também comecei a fazer terapia ocupacional para reabilitar o movimento das mãos, além de fonoaudióloga porque tive perda vocal e estava bem rouca”, acrescenta.
Após o imenso drama vivido, Marta Moreira agradece aos profissionais de saúde que cuidaram dela. “A pandemia colocou em evidência duas coisas sobre o SUS: a nossa necessidade dele e a existência de bons profissionais de saúde. Graças a Deus, estive com os melhores. Tenho muita gratidão pelos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem do Irmãos Penteado. Quando acordei, por exemplo, estava com muita vontade de comer fruta e eles me levavam banana. Também tiro o chapéu para a equipe do SAD, com fisioterapeuta, nutricionista, médico e enfermagem”, homenageia.
Os familiares de Marta Moreira também tiveram papel de fundamental importância diante da situação delicada pela qual atravessaram. “Não teria sido a mesma coisa sem o apoio do meu marido, que parou de trabalhar para cuidar das coisas. Mesmo com idade avançada, minha mãe continuou trabalhando, e mesmo assim deu grande apoio. Apesar de ter ficado muito abalado, meu filho também me deu bastante auxílio com algumas tarefas do dia a dia”, enaltece Marta.
A educadora infantil revela ter recebido grande suporte da direção da escola onde trabalha: “Meu marido teve muito apoio da equipe gestora, tanto em termos de burocracia quanto de bem-estar. Espero que eu possa voltar a trabalhar ainda neste ano”.
Por fim, Marta destaca a importância da rede de apoio e solidariedade formada pelas inúmeras amizades que construiu ao longo da vida. “Felizmente tenho muitos amigos, tanto do tempo em que trabalhei com a minha mãe na feira quando criança quanto do período em que cursei Pedagogia na Unicamp, bem como das escolas por onde passei. Cheguei a receber 3 mil mensagens no meu WhatsApp. Também agradeço muito às pessoas que foram doar sangue para mim, inclusive uma amiga não conseguiu doar porque minha cota de doação já tinha extrapolado”, finaliza.
Outra batalha pela mobilidade física
Em novembro do ano passado, o jovem fotógrafo André Montejano, de 28 anos, vivia o terceiro dia de uma viagem a trabalho no interior da Bahia, quando começou a sentir os primeiros sintomas da infecção do novo coronavírus. “Acredito que me contaminei em algum momento durante o trajeto, provavelmente no voo. Após perder paladar e olfato, realizei o teste de Covid-19 e deu positivo”, conta André, que precisou cumprir período de quarentena em um quarto de hotel na cidade de Luís Eduardo Magalhães, a quase mil quilômetros de distância da capital Salvador.
Embora não tenha apresentado outros sintomas mais graves, André Montejano sofreu uma crise aguda de gastrite, que desencadeou outra complicação a partir do sexto dia de isolamento. “A dor de estômago era tão forte que eu acordava de madrugada e praticamente não conseguia dormir. Depois que passou a gastrite, a musculatura do meu lado inferior esquerdo começou a travar, ou seja, perna e coxa. Inicialmente, eu não sabia o motivo e pensava que era algum problema de circulação por ficar muito tempo em repouso”, relata Montejano, que precisou se despedir do Nordeste mais cedo do que imaginava por conta da persistente dificuldade de locomoção.
“Eu deveria ficar um mês na Bahia, mas acabei permanecendo por apenas 18 dias. Assim que me recuperei da infecção, antecipei a passagem e adiantei o serviço. Produzi menos material do que precisava, mas tive que voltar pois estava sozinho, com minha família longe e preocupada, então imagina a neurose”, revela o jornalista.
Ao retornar a Campinas, cidade onde reside e trabalha, André Montejano buscou ajuda médica para tentar desvendar a origem do problema muscular. “Procurei especialistas em perna e quadril e realizei uma série de exames. Cogitou-se a possibilidade de desgaste ósseo, mas um fisioterapeuta especializado em osteopatia me examinou e chegou à conclusão de que realmente havia sido consequência da gastrite que a Covid me trouxe. Segundo ele, toda a musculatura da perna esquerda havia subido para o abdômen. Os médicos ficaram espantados porque nunca tinham visto esse tipo de problema, mas depois começaram a relatar casos semelhantes”, explica Montejano.
Para recuperar a plena mobilidade física, André Montejano realiza sessões semanais de fisioterapia há mais de seis meses, além de aulas bissemanais de pilates e exercícios constantes em academia. Ele está em fase final de reabilitação, mas ainda enfrenta algumas dores e pequenas restrições de movimento da cintura para baixo.
“Não conseguia caminhar, agachar, subir escada nem ficar sentado muito tempo na mesma posição. A sorte é que consegui trabalhar mais pelo computador”, relata André
“Sempre pratiquei esportes como corrida, ciclismo e futebol, então foi bem difícil ficar seis meses arrastando a perna e mancando, além da chateação de ficar explicando para todo mundo que perguntava o que tinha acontecido. Não conseguia caminhar, agachar, subir escada nem ficar sentado muito tempo na mesma posição. A sorte é que consegui trabalhar mais pelo computador”, descreve o fotógrafo, dono de uma produtora audiovisual e integrante do projeto “Photo Que Alimenta”, que atende famílias e comunidades da região de Campinas com necessidades básicas durante a pandemia de Covid-19