Em um ano de pandemia, oficialmente decretada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo assistiu, atônito, ao adoecimento de 122 milhões de pessoas e à morte de ao menos 2,7 milhões – um terço delas ocorridas em apenas três países: Estados Unidos, Brasil e México. Também pôde acompanhar, em tempo quase real e com um nível de detalhe talvez nunca visto antes, a evolução do patógeno que pôs de joelhos o sistema de saúde e afetou profundamente a economia de muitas nações.
Desde que foi identificado no final de 2019 na cidade de Wuhan, na região central da China, o vírus Sars-CoV-2 sofreu uma série de transformações enquanto se espalhava pelo planeta. À medida que infectava mais e mais pessoas e se replicava, acumulou pequenas modificações em seu material genético até que, em diferentes locais e momentos, já estava tão diferente do original que passou a ser considerado uma nova variante, que, ao prosperar e se disseminar, começa a ser chamada de linhagem – a linhagem agrupa exemplares com a mesma origem e muito semelhantes entre si, mas que podem possuir pequenas diferenças.
Em 15 de março deste ano, a Nextstrain listava nada menos do que 359 linhagens do novo coronavírus catalogadas desde dezembro de 2019
Em 15 de março deste ano, a Nextstrain, uma ferramenta de visualização de genomas virais, listava nada menos do que 359 linhagens do novo coronavírus catalogadas desde dezembro de 2019 pelo sistema de classificação Pangolin. Entre tantas, três delas – uma surgida no Reino Unido, outra na África do Sul e uma terceira no Brasil – vêm causando especial preocupação por serem mais transmissíveis, poderem escapar à ação de anticorpos e, em alguns casos, provocarem doença mais grave do que as que circulavam anteriormente.
“Com as ferramentas genéticas de que dispomos atualmente, estamos assistindo à evolução desse patógeno ao mesmo tempo que ela ocorre”, afirma o virologista José Luiz Proença Módena, coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A primeira dessas variantes, que já se tornou uma linhagem e em março estava presente em 118 países, foi detectada em 14 de dezembro do ano passado no Reino Unido. Ela começou a circular em setembro no condado de Kent, no sudeste da Inglaterra, e rapidamente se espalhou.
Apelidada inicialmente de variante de Kent ou britânica, tornou-se depois conhecida por um frio e sóbrio conjunto de letras e números (B.1.1.7) definido por uma nomenclatura proposta por pesquisadores da Austrália e do Reino Unido.
Essa sequência de números indica que ela é a sétima variante derivada da primeira que descende da linhagem B.1, uma das duas que surgiram originalmente em Wuhan – a outra, possivelmente mais antiga, é a A.1, que desapareceu em meados do ano passado. Por causa de algumas alterações (mutações) que apresenta no genoma, a B.1.1.7 é transmitida ao menos duas vezes mais facilmente do que a linhagem que a originou e, ao que parece, também causa doença mais grave.
No final de 2020 havia sinais de que ela poderia contribuir para o aumento das hospitalizações no Reino Unido e, agora, surgiram evidências de que está associada a um risco maior de morrer.
Paciente infectados pela nova variante tem 61% mais risco de morrer
Em um estudo publicado em 15 de março na revista Nature, o epidemiologista Nicholas Davies e matemáticos e estatísticos da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres estimaram que uma pessoa infectada por essa variante tem, em média, uma probabilidade 61% maior de morrer do que alguém que contraiu alguma das linhagens que circulavam anteriormente. Eles chegaram a essa conclusão depois de analisar 4.945 óbitos ocorridos em um grupo de 1.146.534 britânicos que haviam testado positivo para o novo coronavírus.
Dias antes, pesquisadores liderados pelo médico Robert Challen, da Universidade de Exeter, também no Reino Unido, apresentaram um resultado semelhante em artigo publicado em 10 de março na revista The BMJ. Ao comparar o total de mortes em um grupo de 54.906 britânicos infectados com a B.1.1.7 com os óbitos em número igual de pessoas que haviam contraído outra linhagem do vírus, verificaram que o primeiro grupo tinha um risco de morrer 64% maior do que o segundo.
Apesar de se disseminar facilmente na população humana, o Sars-CoV-2, na fase inicial da pandemia, parecia ser um vírus razoavelmente bem-comportado, que sofria modificações muito lentamente. A cada mês acumulava, em média, duas mutações na sequência de quase 30 mil bases nitrogenadas, as letras químicas que compõem seu genoma, uma espécie de manual de instruções para a fabricação de novas cópias do vírus.
Só para se ter um parâmetro de comparação, o vírus da influenza A, causador de pandemias de gripe, evolui muito mais rapidamente: sofre uma mutação a cada vez que se multiplica, em questão de horas, ritmo que obriga a atualização anual da composição da vacina contra a gripe.
Passaram a surgir variantes que apresentavam ,simultaneamente, várias mutações e se disseminaram rapidamente
Já no final de 2020, quando eram anunciados os resultados de eficácia das primeiras vacinas e ressurgia a esperança de que a pandemia estivesse se atenuando, o novo coronavírus voltou a surpreender. “Passaram a surgir variantes que apresentavam simultaneamente várias mutações e se disseminaram rapidamente, substituindo as anteriores”, lembra o virologista Fernando Spilki, pesquisador da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, e coordenador da Rede Nacional de ômicas de Covid-19, a Corona-ômica BR, que acompanha a circulação do vírus no país.
Uma dessas variantes é a que originou a linhagem B.1.1.7. Ela apresenta 23 mutações em relação à B.1, de Wuhan, das quais 17 provocam a troca de um aminoácido nas proteínas do vírus – as outras seis são inócuas.
Os aminoácidos são compostos químicos que, unidos uns aos outros em sequência, formam as proteínas. Em alguns casos, a substituição de um único aminoácido é suficiente para alterar a estrutura tridimensional da proteína e modificar seu funcionamento.
Pesquisadores e profissionais da área da saúde se preocupam porque oito das substituições da B.1.1.7 (seis trocas e duas eliminações) ocorrem em alguns dos 1.273 aminoácidos da proteína spike (S), justamente a que permite ao vírus aderir à superfície das células humanas e invadi-las e é o principal alvo dos anticorpos produzidos por algumas vacinas. Uma mutação em especial chama a atenção: a N501Y.
Essa mutação leva à substituição do aminoácido asparagina (N) pelo aminoácido tirosina (Y) na posição 501 da proteína S. Identificada pela primeira vez na linhagem B.1.1.7, essa troca parece aumentar a adesão do vírus às células e sua transmissibilidade. Por causa dessas características, a agência de saúde Public Health England (PHE), do Reino Unido, qualificou essa linhagem como variante de preocupação número 1 de dezembro de 2020.
Em meados de março, a linhagem B.1.1.7 causava 42% das infecções pelo novo coronavírus no mundo
Em meados de março, segundo estimativa da Nextstrain baseada em dados do sistema Pangolin, a linhagem B.1.1.7 causava 42% das infecções pelo novo coronavírus no mundo. De maneira independente e quase simultânea, a mutação N501Y também apareceu nas duas outras linhagens do vírus que mais inquietam os especialistas: a B.1.351, originária da África do Sul, e a P.1, que surgiu em Manaus, no Brasil.
Elas se encontram em expansão e, estima-se, já causam, respectivamente, 6% e 2% dos casos de Covid-19 no planeta. “Até o surgimento da variante B.1.1.7 no Reino Unido, acreditávamos que a taxa de evolução do vírus fosse lenta e que seria possível segurar o aumento de sua diversidade até a chegada das vacinas”, conta a médica Ester Sabino, da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora de uma das equipes que identificaram a P.1.
A linhagem B.1.351 foi detectada inicialmente na região metropolitana de Nelson Mandela Bay, no sul da África do Sul, em outubro de 2020, embora possivelmente tenha surgido meses antes, e foi reportada pelas autoridades do país em dezembro. Descrita pelo grupo coordenado pelo virologista brasileiro Túlio de Oliveira, da Universidade KwaZulu-Natal, em um artigo publicado em março deste ano na revista Nature, ela apareceu com mais frequência em pessoas mais jovens e saudáveis e hoje já tem transmissão local na Europa e na América do Norte.
P.1
Um indivíduo infectado pela P.1 produz, em média, duas vezes mais vírus do que os contaminados pelas linhagens que circulavam antes no país, constatou a equipe do virologista Renato Santana de Aguiar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrante da rede Corona-ômica BR. Uma das consequências é que, em meados de março, a P.1 já representava 41% das infecções pelo novo coronavírus no Brasil.
Outra análise realizada pela Rede Genômica da Fiocruz indicava que em menos de três meses a linhagem se tornou responsável por mais da metade das infecções em seis estados: Pernambuco (51%), Rio Grande do Sul (63%), Rio de Janeiro (63%), Santa Catarina (64%), Paraná (70%) e Ceará (71%).
“O Brasil tornou-se um terreno fértil para o surgimento de variantes e linhagens mais contagiosas”
“A situação que o país vive hoje é semelhante àquela em que se encontrava Manaus em dezembro, com a P.1 em franca disseminação”, afirma Sabino, que coordena no país o Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), financiado pela agência britânica Medical Research Council e pela FAPESP.
“O Brasil tornou-se um terreno fértil para o surgimento de variantes e linhagens mais contagiosas”, afirma o virologista Eurico Arruda, da USP em Ribeirão Preto, que estuda os coronavírus há quase três décadas (ver Pesquisa FAPESP nº 301). A população suscetível a contrair o vírus é grande, o país vacina muito lentamente e as medidas de prevenção, como distanciamento social e uso de máscara, não vêm sendo adotadas de forma efetiva em todas as regiões. “Quanto mais gente o vírus infectar, mais ele vai se multiplicar e sofrer alterações”, explica.
(Agência Fapesp)