A Tarifa Zero é um debate posto na sociedade para as cidades de todos os tamanhos e isso não tem volta. Mais do que uma política de mobilidade urbana, ela se qualifica como uma política social, econômica e ambiental, garantindo plenamente a todas as pessoas o direito de ir e vir, de utilizar os gastos com deslocamentos para outras finalidades (alimentação, vestuário, educação, lazer etc.) e para diminuir a poluição ambiental com a migração dos usuários de carros para o transporte público.
Nos causa muita satisfação poder dialogar novamente e em alto nível com ideias contrárias, como fizemos com Jurandir Fernandes inúmeras vezes entre 2002 e 2014, por ocasião da implantação do Bilhete Único na capital, em Campinas e nos debates na Alesp nos inúmeros eventos sobre a proposta de implantação do Bilhete Único Metropolitano.
Em um artigo publicado neste jornal, dia 6 de junho, Jurandir Fernandes, ex-Secretário Estadual de Transportes Metropolitanos, se posicionou publicamente contra a Tarifa Zero.
O foco principal de sua linha de argumentação foi que o tema está sendo explorado eleitoralmente, e que a gratuidade no transporte público não é viável para cidades grandes e regiões metropolitanas, considerando ainda que em alguns casos o transporte público está sob gestão municipal, estadual e federal.
Essa abordagem, a mesma utilizada há mais de 20 anos atrás contra o Bilhete Único, reduz a Tarifa Zero a uma ação possível apenas nos locais cuja mobilidade urbana não se configura como um problema tão complexo. Ao fazer essa redução, Jurandir leva seu leitor a entender que a situação do transporte público não tem jeito, em que a lógica do enxugar gelo deve perdurar, pois nenhuma outra proposta inovadora é colocada em debate.
Por que enxugar gelo? O modelo de financiamento do transporte público, custeado majoritariamente pela tarifa paga pelo usuário, tem apresentado sinais inequívocos de esgarçamento. Dados da NTU de 2022 (“Transporte Público por Ônibus – 2 anos de Impactos da Pandemia de Covid-19”) apresentam uma redução constante de passageiros, impactando na arrecadação e, consequentemente, no custeio desse sistema. A maioria das cidades apelam para o aumento do preço das passagens, o que tende a afastar usuários, aumentar os excluídos do transporte e diminuir ainda mais a arrecadação. É um círculo vicioso que precisa ser rompido, e para isso, é necessária uma boa, estudada e ousada política pública, alicerçada em decisões políticas de gestores eleitos democraticamente.
A Tarifa Zero surge nesse cenário como uma política disruptiva, que quebra esse paradigma e, além de tirar a pressão do bolso do usuário, permite uma organização do sistema de transporte e do trânsito de forma mais eficiente e sustentável, desafogando uma demanda reprimida de pessoas que precisam usar o transporte, mas se veem excluídas por não terem como arcar com o elevado custo das passagens. Incluem-se aqui a melhoria do trânsito caótico devido a migração de usuários para o modal do transporte público.
Jurandir argumenta, assim como as justificativas que foram utilizados contra o Bilhete Único, que a gratuidade aumentará a demanda por ônibus, desequilibrando sistemas municipais e metropolitanos comandados por outras esferas da federação. Sim, ele está certo, mas isso não pode ser visto como um problema, assim como não foi quando implantamos o Bilhete Único na capital, que só se integrou com o Metrô e a CPTM quase dois anos depois, por decisão política, pois tecnicamente e tecnologicamente não havia óbices.
Queremos construir políticas públicas de mobilidade urbana para milhões de pessoas que deixam de ir ao médico, estudar, trabalhar, procurar emprego, ter um momento de lazer, pois não têm dinheiro para ir e voltar. Como incluir essas pessoas? Essa é uma questão que precisa ser priorizada nas discussões sobre transporte e mobilidade urbana e as eleições municipais são momentos ímpares para os debates de propostas para as cidades.
Não vemos o aumento da demanda e das opções de deslocamentos como um problema, muito pelo contrário.
Queremos que as pessoas possam sair das duas únicas opções oferecidas (de A para B ou de B para A) para quantos elas necessitarem, garantindo seu direito de ir e vir. Também não significa um exponencial aumento de linhas e frota, uma vez que essa demanda estará distribuída ao longo do dia, no pico e nos entre picos (onde de 30 a 40% da frota fica parada), como foi percebida nas cidades que já implantaram a Tarifa Zero.
Quando uma proposta de política pública é chamada de utópica ou sonho, está incutido o pressuposto de que as pessoas tiveram uma boa ideia, sem se preocupar com a viabilidade da mesma, ressaltando apenas os aspectos positivos, deixando de se atentar para as dificuldades operacionais. Isso é um ledo engano, já demonstramos em nossas trajetórias e experiência na gestão pública.
Ao falarmos de Tarifa Zero, significa que estudamos o assunto por todos seus aspectos, assim como os problemas que são inerentes ao processo de implantação. Não é algo que é feito num passe de mágicas, mas sim um processo gradual que só pode ser iniciado pela vontade política.
Quando iniciamos a implantação do Bilhete Único em São Paulo, enfrentamos muita resistência do corpo técnico da prefeitura e não tivemos nenhum apoio do governo do estado. O caos previsto pelos resistentes nunca se concretizou e o Bilhete Único é uma política vitoriosa, que está incorporada na vida dos paulistanos.
O sucesso foi tamanho, que cidades como Campinas, Guarulhos, São Bernardo, Santo André, Rio de Janeiro e tantas outras também a implantaram. Uma ideia para ganhar escala, sempre precisa de um início.
Fernandes se propôs a discutir em um próximo texto a questão metropolitana e o financiamento do sistema de transporte. Estamos ansiosos para poder ver suas contribuições a respeito desses assuntos, e com isso ampliar e fortalecer a propagação deste debate.
Jilmar Tatto é deputado federal (PT-SP), preside a Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero no Transporte Público. Foi Secretário Municipal de Transportes da capital nos governos de Marta Suplicy e Fernando Haddad, quando foram implantados o Bilhete Único, Bilhete Único Diário, Semanal e Mensal. Foi também do Conselho Administrativo da SPTrans e da CET
Gerson Bittencourt é consultor e especialista em Mobilidade Urbana e Transporte Público. Foi Secretário Municipal de Transportes da capital e presidente da SPTrans na gestão de Marta Suplicy e Secretário de Transportes de Campinas e presidente da Emdec, quando foram implantados o Bilhete Único nas duas cidades. Foi deputado estadual (PT) em São Paulo, presidindo as Frentes Parlamentares pela Implantação do Bilhete Único Metropolitano e do Barateamento das Tarifas no Transporte Público