Com a autorização e a parceria do Prof. André César Medici, vamos reproduzir quase integralmente e com alguns pontos adicionais o texto por ele publicado em seu Blog em 12/07/2024. Trata-se de um grande alerta a nós brasileiros na preservação de nosso SUS.
O National Health Service, conhecido por sua sigla NHS, nascido no Reino Unido após a segunda guerra mundial, tem sido ao longo de décadas um dos sistemas de saúde mais admirados do mundo, por sua centralidade estatal, atendimento quase gratuito e universal. Ele é o maior exemplo dos modelos nascidos sob os princípios e conceitos formulados por Sir William Beveridge (os chamados Beveridgean Models) e inspiração para vários sistemas de saúde (incluindo o SUS no Brasil) financiados, não por contribuições de empresas e empregadores, mas via tributação ordinária. Modelos como esse se contrapõe aos modelos de seguros públicos ou privados (de inspiração bismarckiana), que se iniciaram após a unificação da Alemanha do século XIX.
Durante décadas o NHS foi líder em bons cuidados à saúde da população e fonte de satisfação e orgulho da população do Reino Unido, mas nos últimos anos a situação parece ter se deteriorado.
A crise no NHS começou a se tornar mais evidente a partir da metade da década de 2010, embora problemas estruturais e financeiros já estivessem presentes há mais tempo. A crescente demanda e envelhecimento populacional, elevação dos custos e inovações, restrições orçamentárias e decisões políticas contribuíram para o agravamento da situação.
Alguns dos principais sintomas e problemas que estão por trás da crise do NHS passam por temas como o subfinanciamento e escassez de recursos humanos frente à demanda gerando aumento das filas e tempos de espera para atendimentos, agravados pelo envelhecimento da população, infraestrutura antiga e insuficiente e atendimento inadequado.
Os gastos em saúde não acompanham a inflação setorial e as necessidades crescentes da população. Entre 2011 e 2018 o gasto em saúde por adulto caiu 6,5% em termos reais. Escassez crônica de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, associados a temas recentes como o burnout e altas taxas de rotatividade entre os funcionários devido à sobrecarga de trabalho, contribuem para a deterioração da capacidade de atender a esta crescente demanda.
Em 2023 haviam, de acordo com o Jornal britânico The Guardian, 112 mil cargos não preenchidos no NHS (6% a mais que em 2022), levando os pacientes a enfrentar longas esperas por cirurgias eletivas, consultas especializadas e demorar para serem atendidos pelos serviços de ambulância e departamentos de emergência. Mais da metade (52%) das enfermeiras que se desligaram do NHS entre 2022 e 2023 o fizeram antes da data prevista.
O envelhecimento da população do Reino Unido tem levado a uma maior prevalência de doenças crônicas, aumentando a sobrecarga dos serviços de saúde num contexto em que a infraestrutura de prestação de serviços é antiga e faltam instalações modernas, com muitos atrasos na construção e atualização de hospitais e centros de saúde.
Tudo isso foi agravado pela pandemia do Covid-19 que exacerbou problemas existentes, levando a um aumento esmagador da demanda por serviços de saúde gerando uma resposta considerada inadequada, em termos comparativos, com outras realidades europeias e até mesmo mundiais. Houve uma enorme demanda insatisfeita por serviços de terapia intensiva e de emergência.
O Reino Unido tem a pior esperança de vida entre outros países da Europa e apresenta uma das maiores taxas de mortalidade de crianças de 0-5 anos entre estes mesmos países. A demanda pelos serviços de saúde mental, que também aumentou sensivelmente durante a pandemia, tem sido outro problema não resolvido. Entre 2016-2017 e 2021-2022 ela aumentou 44%, passando de 4,4 para 6,4 milhões de pessoas.
A capacidade de resposta do NHS por serviços de saúde mental tem sido insuficiente, levando ao atendimento e suporte inadequado e longas esperas por tratamento. A população do Reino Unido frequentemente manifesta sua insatisfação com a qualidade do atendimento devido a tempos de espera prolongados e falta de recursos. Queixas sobre atendimento inadequado em serviços de emergência e consultas especializadas e dificuldades em acessar serviços de saúde, especialmente para procedimentos não emergenciais, fazem parte das críticas diárias que surgem nos jornais, meios televisivos e redes sociais do Reino Unido.
Problemas para obter consultas com médicos de atenção básica e especialistas – um dos orgulhos e show case do sistema inglês, começam a aumentar com frequência entre a população. Soma-se a isso críticas às condições de trabalho dos profissionais de Saúde, baixos salários e baixos níveis de satisfação e bem-estar dos profissionais de saúde. Manifestações e greves de trabalhadores de saúde aumentam em busca de melhores condições.
Críticas à transparência e a gestão dos recursos do NHS, bem como a desconfiança em relação à eficácia das políticas e alocação de fundos, também se manifestam entre políticos, especialistas e formuladores de políticas públicas. A crise do NHS tem levado o país a um nível mais amplo de debate sobre reformas necessárias. Esse debate é multifacetado e envolve várias questões críticas.
Aqui estão os principais pontos de discussão:
• Financiamento e Recursos Adicionais – Muitos argumentam que é necessário um aumento significativo no financiamento para atender à crescente demanda e melhorar a qualidade do atendimento. Outros afirmam que simplesmente aumentar o financiamento não resolverá os problemas sistêmicos de eficiência e gestão.
• Modelos de Pagamento de Provedores – Muitos defendem modelos de financiamento baseados em resultados e associados ao desempenho, que recompensem provedores de saúde com base na qualidade dos cuidados e nos resultados dos pacientes. Mas a eficácia desses modelos é discutida, com preocupações sobre como medir resultados de forma justa e como medir o impacto em diferentes áreas de especialização.
• Orçamento Global – Alguns também defendem a necessidade de um orçamento global integrado que cubra todos os níveis de atendimento, promovendo uma alocação mais eficiente dos recursos, enquanto outros argumentam que diferentes níveis de cuidados devem ser financiados separadamente para evitar a complexidade e garantir que cada nível receba atenção e recursos adequados.
• Avaliação de Desempenho – Alguns defendem a implementação de medidas de desempenho que incentivem a colaboração entre os diferentes níveis de cuidado. Outros acreditam que medidas de desempenho separadas para cada nível de cuidado podem evitar a diluição de responsabilidades e garantir que cada nível se concentre em suas funções principais.
• Reforma Estrutural – O debate neste âmbito envolve temas como a integração mais estreita entre os cuidados primários, secundários e sociais para fornecer um atendimento mais coeso e centrado no paciente. Embora haja um consenso sobre a necessidade de integração, existem discordâncias sobre a melhor abordagem para estruturar, financiar, governar e implementar essa integração. A chave para resolver essas divergências está em encontrar um equilíbrio entre centralização e descentralização, uniformidade e adaptação local, e eficiência e equidade.
• Centralização e Responsabilidade Local – Defensores da centralização argumentam que uma abordagem coordenada e centralizada pode garantir uniformidade nos cuidados e na distribuição de recursos, além de facilitar a implementação de políticas nacionais. Uma governança centralizada, através de liderança forte e central, poderia promover uma visão unificada e a implementação coerente de políticas. Aqueles que apoiam a governança local argumentam que a responsabilidade local pode levar a uma maior responsabilização e envolvimento das comunidades na tomada de decisões. Para estes, uma maior autonomia local gera um atendimento mais adaptado às necessidades específicas das comunidades, aumentando a eficiência e a resposta rápida às mudanças nas demandas locais.
• Centralidade no Paciente – Defensores de um modelo centrado no paciente argumentam que a integração deve focar nas necessidades e preferências dos pacientes, envolvendo-os ativamente no planejamento e na tomada de decisões. Outros acreditam que a eficiência e a eficácia do sistema como um todo devem ser priorizadas, mesmo que isso signifique menos envolvimento direto dos pacientes em algumas decisões.
• Eficiência Operacional – O debate gira em torno de simplificar processos administrativos e reduzir a burocracia para permitir que os profissionais de saúde se concentrem mais no atendimento ao paciente. A implementação de novas tecnologias e a digitalização são vistas como soluções potenciais, mas há preocupações sobre os custos iniciais e a adaptação dos funcionários a estes novos processos.
• Recrutamento e Retenção de Pessoal – Neste âmbito as questões em discussão giram em torno da melhoria das condições de trabalho, ou seja, melhorar salários, condições de trabalho e oportunidades de desenvolvimento profissional para atrair e reter profissionais de saúde. Enquanto muitos concordam com a necessidade de melhorias, há debates sobre como financiar essas mudanças e equilibrar o orçamento.
• Acesso e Qualidade dos Serviços – As questões giram em torno da implementação de medidas para reduzir os tempos de espera para cirurgias eletivas, consultas especializadas e atendimento de emergência. As soluções incluem aumentar a capacidade, melhorar a eficiência e investir em cuidados preventivos, mas a execução prática dessas ideias é um desafio.
• Uso de Tecnologia e Inovação – Muitos propõe a expansão do uso de telemedicina e digitalização de prontuários e processos administrativos. Mas embora a tecnologia possa melhorar a eficiência, há preocupações com a privacidade dos dados, a equidade no acesso e a adaptação dos usuários. Há quem defenda a implementação de um sistema único e interoperável de registros eletrônicos de saúde para melhorar a continuidade e a coordenação dos cuidados, enquanto outros acreditam que permitir a existência de vários sistemas, desde que interoperáveis, pode promover a inovação e a adaptação às necessidades específicas de diferentes áreas e organizações.
• Privatização – Há algum tempo discute-se o aumento da participação de provedores privados no NHS para melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços, mas há um forte debate sobre o impacto da privatização na equidade e acessibilidade dos cuidados de saúde, com muitos temendo a criação de um sistema não equitativo de duas camadas.
• Prevenção e Saúde Pública – Alguns propõe aumentar o investimento em programas de saúde pública e prevenção para reduzir a carga de doenças crônicas e melhorar a saúde geral da população. Isto tem sido amplamente apoiado, mas o desafio reside em reorientar recursos e criar programas eficazes que produzam resultados a longo prazo.
O NHS tem diversos planos e estratégias para enfrentar os desafios atuais e futuros, melhorar a qualidade dos serviços, e garantir a sustentabilidade do sistema de saúde. Esses planos estão detalhados em documentos como o NHS Long Term Plan (Plano de Longo Prazo do NHS) e outras iniciativas específicas.
Abaixo estão os principais pontos dos planos futuros do NHS:
1. NHS Long Term Plan (2019-2029)
• Foco na Prevenção e Saúde Comunitária: Investimento em programas de prevenção, incluindo campanhas de vacinação, redução do tabagismo, controle da obesidade e promoção de estilos de vida saudáveis. Expansão dos serviços de saúde mental e comunitários, incluindo um aumento significativo no financiamento e acesso.
• Digitalização e Inovação: Adoção de tecnologias digitais, como telemedicina, registros eletrônicos de saúde, e aplicativos móveis para melhorar o acesso e a eficiência dos serviços. Implementação de novas tecnologias de diagnóstico e tratamento, como inteligência artificial e análise de big data para personalizar cuidados e prever surtos de doenças.
• Integração de Serviços: Integração dos serviços de saúde primários, secundários e terciários para proporcionar um atendimento mais coeso e centrado no paciente. Promoção de equipes de saúde multidisciplinares para atender melhor às necessidades complexas dos pacientes, especialmente os com condições crônicas.
• Sustentabilidade Financeira e Eficiência: Implementação de medidas para melhorar a eficiência operacional e reduzir desperdícios, incluindo a otimização de processos e a centralização de compras. Reformas nos modelos de financiamento para garantir a sustentabilidade a longo prazo, incluindo novos métodos de pagamento baseados em resultados.
2. Melhoria da Força de Trabalho
• Recrutamento e Retenção: Iniciativas para recrutar mais profissionais de saúde, tanto no Reino Unido quanto internacionalmente. Melhoria das condições de trabalho, aumento dos salários e criação de oportunidades de desenvolvimento profissional para reter talentos existentes.
• Formação e Desenvolvimento: Programas de educação e treinamento contínuos para atualizar as habilidades dos profissionais de saúde e prepará-los para novos desafios. Aumento das vagas em programas de formação para médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde.
3. Redução das Desigualdades em Saúde
• Acesso Igualitário: Iniciativas específicas para melhorar o acesso aos serviços de saúde para populações vulneráveis, incluindo minorias étnicas, imigrantes e pessoas de baixa renda. Programas para reduzir as desigualdades regionais no acesso e na qualidade dos cuidados de saúde.
• Saúde Mental: Expansão significativa dos serviços de saúde mental, com maior financiamento e acesso mais rápido a tratamentos. Integração dos cuidados de saúde mental com os cuidados físicos para proporcionar um atendimento holístico aos pacientes.
4. Infraestrutura e Capacitação
• Modernização das Instalações: Planos para construir novos hospitais e renovar instalações existentes para atender à crescente demanda e melhorar a qualidade dos cuidados. Investimento em equipamentos médicos modernos e tecnologias avançadas para diagnóstico e tratamento.
• Capacidade de Atendimento: Expansão da capacidade de leitos hospitalares para reduzir os tempos de espera e melhorar o atendimento de emergência. Expansão dos serviços ambulatoriais para reduzir a pressão sobre os hospitais e proporcionar atendimento mais rápido e acessível.
5. Envolvimento dos Pacientes e Comunidades
• Cuidado Centrado no Paciente: Envolvimento ativo dos pacientes no planejamento e na tomada de decisões sobre seus próprios cuidados. Sistemas para coletar feedback dos pacientes e usar essas informações para melhorar os serviços.
• Saúde Comunitária: Colaboração com organizações comunitárias e locais para promover a saúde e o bem-estar nas comunidades. Programas de educação em saúde para capacitar os indivíduos a gerenciarem melhor sua própria saúde.
Os planos futuros do NHS são abrangentes e visam enfrentar os desafios atuais e futuros através de uma combinação de inovação tecnológica, integração de serviços, melhoria da força de trabalho e foco na equidade e na sustentabilidade. A implementação bem-sucedida desses planos exigirá coordenação eficiente, financiamento adequado e um compromisso contínuo com a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde para todos os residentes do Reino Unido.
A vitória do Partido Trabalhista nas eleições do Reino Unido, em 5 de julho de 2024, poderá resultar em um aumento significativo do financiamento e um foco renovado na melhoria das condições de trabalho, na integração dos serviços e na equidade no acesso à saúde. As políticas trabalhistas geralmente favorecem um fortalecimento do NHS como um sistema de saúde universal e gratuito, com ênfase na prevenção, inovação e sustentabilidade.
Se implementadas de forma eficaz, essas propostas podem abordar muitos dos desafios atuais enfrentados pelo NHS e melhorar a qualidade e a acessibilidade dos cuidados de saúde no Reino Unido.
O importante deste relato, é alertar as autoridades brasileiras para o constante trabalho necessário para o aperfeiçoamento de nosso SUS.
Lembrar que em nosso país, a SUS dependência é enorme (+ de 150 milhões de pessoas) e que o perfil socioeconômico é outro e muito mais dependente de um sistema público competente e acessível.
Carmino Antônio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022 e atual Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan. Diretor científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).
André César Medici é autor do Blog “Monitor de Saúde”, PhD em História, Economista em Saúde pelas Universidades de São Paulo (USP) e de Bethesda, Maryland, Estados Unidos.