Da mesma maneira que a esquerda parece precisar de Geraldo Alckmin para vencer as eleições este ano, a direita brasileira – ou pelo menos a parcela da direita que se considera democrática, liberal e socialmente responsável – precisa de Lula para que as políticas públicas possam colocar um país de tamanha grandeza como o Brasil de volta ao lugar de liderança e destaque que vinha conquistando até 2015.
Encarar de forma realista a aparente contradição na aliança Lula-Alckmin pode revelá-la, na verdade, estratégica e certeira. O ex-governador de SP renunciou ao posto de cacique no PSDB e deu um passo significativo à centro-esquerda, filiando-se ao PSB. Sinalização muito mais assertiva do que não precisou fazer José de Alencar, que foi vice de Lula entre 2003 e 2011, filiado ao PL (atual partido de Jair Bolsonaro) e ao PRB (hoje Republicanos, partido de Hamilton Mourão).
Ir para o PSB, onde estão nomes como Marcelo Freixo (ex-PSOL), Flávio Dino (ex-PCdoB) e Tabata Amaral (ex-PDT), significa, também, reconhecer que a direita socialdemocrata foi amargamente derrotada pela direita fundamentalista, autoritária e ultraconservadora de siglas até então nanicas, como o PSL (esse mesmo que, como “União Brasil”, tenta, em vão, ressuscitar politicamente o ex-juiz, ex-ministro, ex-herói Sérgio Moro).
Importante lembrar que, em 2018, Marina Silva (REDE), Álvaro Dias (PODE), Henrique Meirelles (MDB), Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB) e João Amoedo (NOVO), mesmo com votos somados (21,93%), perderam não só para Bolsonaro (PSL) e Haddad (PT), mas para a soma de votos brancos, nulos e abstenções (29,1%) nas eleições presidenciais.
Se, em 2022, as pesquisas apontam uma clara vitória de Lula nas urnas, é necessário considerar que, além de manobras eleitoreiras de última hora, o agravamento das muitas crises que o Brasil enfrenta hoje em dia, somado ao uso de mentiras e fake news, pode inclinar parte do eleitorado a apostar, outra vez, em promessas vazias e pautas rasas, como “combate à corrupção” e “defesa de Deus e da família”.
Mais de 20 milhões de brasileiros e brasileiras passam fome, incluindo 12 milhões de desempregados, e mais de 42 milhões de pessoas trabalhando informalmente, a maioria de forma precária, diante de uma inflação descontrolada.
Apesar disso, mesmo exposto o fracasso da reforma trabalhista pós-golpe de 2016, a falácia do empreendedorismo continua seduzindo pessoas que trabalham 12, 14, 16 horas por dia, em regime de autoexploração, sem conseguir pagar as contas ao final do mês.
Cabe à esquerda, nesse sentido, compreender que, embora reformas superficiais não sejam suficientes para reestruturar social e economicamente um país ainda refém do poder dos grandes bancos e empresas privadas transnacionais, parte considerável da população brasileira é formada por pessoas que acreditam na meritocracia e na exploração do trabalho como única forma de superação da pobreza, muitas vezes reduzida ao acesso ao consumo marginal.
Entregadores de aplicativo que oscilam entre buscar uma organização sindical para lutar por garantias trabalhistas e reconhecerem-se como investidores por possuírem ações das mesmas empresas que expropriam seu trabalho. Caminhoneiros sem os quais o País não funciona, que fizeram uma greve nacional para derrubar a primeira (e única) mulher eleita presidenta do Brasil, mas que não conseguem se articular diante da absurda alta do preço dos combustíveis este ano.
Pessoas que se endividam para pagar o aluguel, enquanto se opõem à taxação de grandes fortunas pertencentes a uma minúscula minoria da população – essa que controla a grande imprensa, as igrejas, os bancos e o governo. Jovens superengajados na militância (tanto de lacração quanto de conservadorismo) nas redes sociais, entre tantos que sequer tiraram título de eleitor e que desacreditam ou desconhecem o funcionamento das estruturas governamentais que ditam as regras e leis que somos obrigados a seguir.
Continuará cabendo aos movimentos sociais o desafio de tencionar um governo de centro-esquerda em direção a agendas mais humanizadas e progressistas, num mundo onde impera o capitalismo financeiro globalizado, não só derrotando a direita neoliberal-fascista, mas persistindo nas lutas protagonizadas por grupos marginalizados, invisibilizados e criminalizados historicamente, por governos de direita e de esquerda, como estudantes e professores massacrados pelo PSDB em SP há décadas, ou os povos indígenas e o campesinato, vitimados pelas políticas de expansão da mineração e do agronegócio, fortalecidas inclusive na era Lula-Dilma.
É preciso criar consensos para ampliar a reforma agrária, como política de combate à fome e geração de empregos dignos no campo, hoje monopolizado pelos latifúndios monocultores.
É fundamental reduzir desigualdades sociais, retomando programas de distribuição de renda e recuperando direitos trabalhistas, para devolver poder aquisitivo à parcela da população que movimenta o comércio local, sustentando os pequenos e médios empresários.
É essencial reconstruir relações diplomáticas e econômicas com países que nos deem alternativas de crescimento em parcerias multilaterais onde o Brasil seja protagonista, não refém. É imprescindível devolver investimentos à pesquisa, ciência e inovação tecnológica, para que o empresariado nacional possa ser competitivo diante do voraz crescimento dos oligopólios transnacionais. É inegociável lutar por um teto sobre cada família, com acesso à educação, saúde e mobilidade, não só como forma de garantir o direito à vida digna, mas também criar condições de reaquecimento de ciclos econômicos capazes de reverter o desemprego estrutural.
E, se realmente pretende-se construir algo maior que um reformismo que pouca coisa muda, a atenção deve ir além das eleições do Executivo, mirando o Legislativo para que a democracia seja verdadeiramente popular e representativa, com cadeiras ocupadas não apenas por homens brancos empresários, ruralistas e militares, mas por mulheres, pessoas pretas e pardas, indígenas, pelo campesinato, por representantes das favelas, da comunidade científica, da comunidade LGBTQIA+, de diferentes matrizes étnicas, religiosas e culturais – como é o composto o povo brasileiro em sua rica diversidade.
Ainda que se mantenham como oposição, tanto a direita socialdemocrata que tem ressalvas a Lula quanto a esquerda progressista que rejeita Alckmin precisam considerar de forma objetiva e pragmática os desafios a serem superados depois da combinação catastrófica de pandemia e um governo de retrocessos e políticas nefastas contra a população, a soberania e a autonomia do Brasil.
Se, por um lado, a descrença em mudanças estruturais e revoluções populares pode ser berço para neofascismos e regimes totalitários, a busca por utopias não pode ser armadilha para justificar a inação nos espaços políticos em permanente disputa, negociação e (des/re)construção.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.