É compreensível que pessoas desamparadas, famintas, sem acesso a educação e saúde, endividadas e desabrigadas, desejem, com urgência, mudanças que alterem radicalmente o cenário de repressão e sofrimento em que se encontram. Esse, aliás, costuma ser o combustível de revoluções populares que colocam fim a regimes tirânicos e buscam, há séculos, a direção que leve a democracias populares.
O que tem se observado no ambiente pré-eleitoral na Argentina, entretanto, é a ascensão artificial, alavancada pelas redes sociais e tabloides sensacionalistas, de mais um fanático de extrema-direita que reivindica para si o título de “revolucionário antissistema”, para lutar contra tudo e contra todos que estão aí, taókei?, e combater a corrupção destruindo as já frágeis e poucas garantias sociais na América Latina.
Líder da coalizão “A Liberdade Avança”, o deputado Javier Milei não traz nenhuma grande novidade depois de Trump (bilionário e ex-presidente dos EUA), Nigel Farage (ferrenho defensor do Brexit, ex-deputado da ultradireita do Reino Unido), Marine Le Pen (ultraconservadora derrotada três vezes nas eleições presidenciais da França), Matteo Salvini (vice-primeiro-ministro italiano, que usou slogans fascistas para se eleger como representante da direita) ou mesmo Jair Bolsonaro, que se elegeu presidente vendendo-se como outsider da política tradicional mesmo após 27 anos de legislatura filiado a partidos do centrão.
Todas essas figuras têm em comum, além do populismo e do aparente desprezo pela vida e pela dignidade daqueles que não consideram iguais, o apoio de setores financeiros que lucram com a instabilidade econômica e com a corrosão das Instituições, valendo-se do cenário de caos, medo e insegurança para fazer fortunas com especulações e corrupção público-privada enquanto pregam o resgate a valores tradicionais, geralmente ligados ao nacionalismo e à religiosidade de grupos dominantes.
Ao apresentar-se como “anarcocapitalista”, Milei cria identificação com uma geração de jovens disfuncionais, afetados pelo desemprego estrutural, que desprezam a educação crítico-reflexiva e culpam as políticas públicas de justiça social pelo fracasso financeiro que não materializa o estilo de vida de influenciadores-herdeiros ou garotos-propaganda que viralizam na internet ensinando como ficar milionário sem trabalhar. Também personifica o herói que desejam as pessoas frustradas com a própria história, saudosistas de um passado inventado e nostálgico que, embora nunca tenha existido, era melhor que o presente.
Promessas vazias como acabar com impostos, dolarizar a moeda nacional, armar o povo para combater a criminalidade, se contrapor às próprias invenções, como “ideologia de gênero” e “doutrinação comunista” – nada disso vai resolver a grave crise em que a Argentina está mergulhada há décadas. Sem uma forte parceria multilateral, como visam iniciativas do Mercosul e do BRICS, a encenação de Milei não passa disso: fantasia.
Mas, se atores como Reagan e Zelensky conseguiram se eleger presidentes dos EUA e da Ucrânia, pode ser que Milei aposte na semelhança de seu personagem caricato com o elenco de bilionários irresponsáveis, egocêntricos e fúteis da série Succession, produzida pela HBO, com enorme audiência na última temporada, exibida este ano. Não por acaso, a série, apesar de fictícia, inspira-se numa das mais poderosas famílias que controlam a grande imprensa dos EUA, decisivas na vitória de George W. Bush, em 2001, e do Donald Trump, em 2016.
De todo modo, valer-se da teoria anarquista para defender fundamentalismos que legitimam práticas antidemocráticas e desumanas, legados de monarquias colonialistas e escravocratas, revela um profundo desconhecimento ou uma perversa manipulação do que originalmente pretendem as correntes filosóficas de Piotr Kropotkin, Mikhail Bakunin, Lev Tolstoi, Pierre Proudhon, Emma Goldman e tantas outras pessoas que dedicaram suas vidas à construção do pensamento genuinamente libertador.
Apesar de haver diferenças na concepção teórica dessas correntes, o condicionamento da liberdade à abolição de qualquer forma de exploração é fundamental a todo anarquismo. Isso inclui a violência de um Estado centralizador, autoritário, ditatorial, mas, também, a de um sistema econômico hierarquizante e cristalizador de relações de poder e exploração econômica, como é o capitalismo. Sem fronteiras, sem deuses, sem senhores – assim é o anarquismo! O pleno exercício da liberdade através da consciência individual e preservação coletiva do respeito à vida (sua e do outro), sem a ambição de acumular riquezas, dominar terras ou impor dogmas.
O que defendem neoliberais que se dizem conservadores nos costumes e liberais na economia é a manutenção de privilégios herdados do pensamento eurocêntrico fundador de um identitarismo elitista, sexista, supremacista e violento, normalizado num continente construído sobre o genocídio de povos originários, escravização de pessoas de pele preta, opressão de mulheres e que, apesar de tudo, segue resistindo, lutando, caminhando.
A falsa ilusão de liberdade antissistema enreda-se na pós-verdade, no delírio de ter soluções imediatas e simplistas, geralmente violentas e extremistas, para situações complexas e multifacetadas, disfarçando o real desejo dos poderosos de preservar privilégios e manter o domínio sobre o outro. Perigoso terraplanismo político-econômico que contamina desde os mais ricos, que sabem exatamente o que estão fazendo, aos mais ingênuos e desinformados, iludidos pelo discurso empreendedor, da mercantilização da vida e do triunfalismo da mesmice.
A farsa, porém, esbarra no modelo que alicerçou a meteórica ascensão da China nas últimas décadas. O dragão asiático foi de um país agrário no começo do século passado para o maior e mais poderoso polo industrial do mundo com pesados investimentos públicos nas políticas desenvolvimentistas do maoísmo, que nunca fez questão de esconder ou negar o autoritarismo militar do partido comunista chinês.
Na década de 1970, remodelou-se no socialismo de mercado diante da iminente globalização do capitalismo e, hoje, usando o Estado para liderar com ampla vantagem o jogo do “livre mercado” (e continuar reprimindo, com violência militar, qualquer oposição política), passa a ditar o ritmo e as regras da economia global a partir do que o secretário-geral do Partido Comunista Chinês chama simplesmente de “modelo chinês”.
Pesados investimentos na educação, ciência, pesquisa e tecnologia, uma profunda reforma agrária, embora verticalizada e conduzida pelo Estado, a nacionalização dos recursos naturais e o rigoroso controle estatal de setores estratégicos, como energia, transportes e comunicações, fundindo a filosofia confucionista a um coletivismo disciplinar, adaptando pressupostos hegeliano-marxistas para o crescimento da nação asiática – eis a fórmula do sucesso chinês. Nada que justifique a grande fome dos anos 1960, o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, ou milhares de prisões políticas de quem luta por democracia em Hong Kong.
Mesmo assim, a violência e o militarismo não parecem ser a maior preocupação dos “libertários e anticomunistas”. Afinal, foi por esse mesmo caminho que os países europeus e os EUA também se desenvolveram – às custas da violência, das guerras e do discurso fundamentalista, retrógrado, antidemocrático e desumano que os extremistas continuam vendendo como algo novo.
O ponto de convergência entre neoconservadores, paleolibertários, anarcocapitalistas e afins é justamente esse: a demagogia da incoerência.
Motosserras e metralhadoras nos palanques, terno com chinelo e cabelo despenteado nas solenidades, moralismo religioso justificando feminicídio e extermínio da juventude das periferias por narcomilícias, herança e tráfico de influência para a própria família e as falácias da meritocracia para o povo.
Enquanto houver guerra entre nós, terão paz apenas os senhores. Esses mesmos, que plantam o ódio e pilham o ouro enquanto lutam por pão, massacrados, os que se recusam, por vaidade, egoísmo ou ignorância, a somar esforços para finalmente dar lugar a uma terra onde reis, leis e deuses não sejam mais necessários. Mas o que diriam os que lucram vendendo manchetes sangrentas, armas e indulgências?
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em Linguagens, Mídia e Arte