De novo a história se repete. Uma grande tragédia aciona o mecanismo da solidariedade e da mobilização pelo bem comum. É o que estamos vendo com a situação no Rio Grande do Sul. De várias formas, de Norte a Sul, brasileiros e brasileiras se mexendo e fazendo o que podem pelas irmãs e irmãos gaúchos. Isto é maravilhoso, o capital humano do voluntariado sendo fomentado e praticado.
Também está havendo uma ação talvez inédita do governo federal, e aqui estamos falando de todos os governos das últimas décadas, em favor de um estado, pela dimensão dos processos em curso. Liberação rápida de recursos financeiros, humanos e materiais, deslocamento de aeronaves, veículos e equipamentos de todo porte, enfim, o que parece estar à altura do Executivo federal está sendo acionado.
Infelizmente tem ocorrido, porém, a prevalência do discurso do ódio e a ocorrência de fake news, mesmo em um cenário grave como esse. O Brasil, a cidadania, não ganham nada com isso, pelo contrário. Mas parece que essa cultura veio para ficar e o país precisa aprender a como lidar com isso.
Mas também tem o papel do Legislativo, do Congresso Nacional, que até o momento não foi sensibilizado como devia para a questão das mudanças climáticas, como decorrência de décadas de destruição, de desmatamento, da falta de planejamento urbano e ocupação do uso do solo e muitas outras questões de ordem socioambiental.
Agora mesmo tramitam no Parlamento brasileiro pelo menos 25 projetos de lei e 3 Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que, na avaliação do Observatório do Clima, “afetam direitos consagrados em temas como licenciamento ambiental – bastião da sociedade contra atividades econômicas potencialmente destrutivas –, grilagem, direitos indígenas, financiamento da política ambiental. Há ainda outros que flexibilizam o Código Florestal, legislações sobre recursos hídricos, mineração, oceano e zonas costeiras, sendo que alguns têm alta probabilidade de avanço imediato”, completa o Observatório do Clima, uma coalizão de dezenas das principais organizações socioambientais do Brasil.
O Observatório cita, por exemplo, o PL 364/2019, que elimina a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais.
Segundo o Observatório, o texto aprovado em março deste ano na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) “deixa toda vegetação ´não florestal` do país em perigo, permitindo que os campos nativos e outras formas de vegetação nativa possam ser livremente convertidas para uso alternativo do solo (agricultura, pastagens plantadas, mineração etc.). Qualquer ocupação antrópica anterior a 22 de julho de 2008, ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, passa a gerar a qualificação de área rural consolidada”, acrescenta o Observatório, lembrando que o projeto aprovado na CCJC teve parecer favorável do relator, um deputado gaúcho. Eliminar a vegetação, qualquer aluno do ensino fundamental sabe, representa a supressão de proteção contra futuras enchentes.
Outra iniciativa em tramitação no Congresso Nacional, que muito preocupa o Observatório do Clima e o conjunto das organizações socioambientais brasileiras, é o PL 2159/2021, sobre a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Na avaliação dos especialistas do Observatório, o projeto torna o licenciamento ambiental “uma exceção ao invés de regra”. O licenciamento e as análises nele incluídas, lembra o Observatório do Clima, são as principais ferramentas para evitar danos socioambientais existentes no Direito Ambiental brasileiro.
Além disso, o Projeto de Lei, já aprovado na Câmara dos Deputados e que aguarda posição do Senado, “dissemina o licenciamento autodeclaratório, por adesão e compromisso (LAC), no qual o empreendedor não apresenta qualquer estudo ambiental, nem mesmo o relatório de caracterização do empreendimento precisa ser conferido. Essa modalidade passa a ser a regra, abrangendo a maior parte dos processos”. Do mesmo modo, o projeto “estabelece uma lista extensa de atividades isentas de licenciamento ambiental”, completa o Observatório.
Em suma, haverá uma liberdade ampla para empreendimentos de várias naturezas, de grande potencial de impacto… na natureza. Essa a consequência do PL 2159/2021, que merece portanto uma atenção máxima da sociedade, sobretudo agora com o episódio no Rio Grande do Sul.
As enchentes históricas em terras gaúchas têm o potencial de enfim despertar um grande movimento de ações concretas de enfrentamento às mudanças climáticas em território brasileiro. Ações preventivas e mitigadoras, de curto, médio e longo prazos.
Mas também é fundamental um olhar muito atento ao que ocorre no Parlamento, para que o país não acabe sofrendo o impacto de um arcabouço de leis que na prática vão contra tudo o que está sendo dito agora, sobre a urgência de ação contra as mudanças do clima.
Porque novos eventos climáticos extremos voltarão a acontecer, e nenhum ponto do território nacional está seguro nesse sentido. Já passou da hora de agir, mas que, enfim, seja agora. Antes que seja tarde demais. Para as dezenas de pessoas que faleceram ou estão desaparecidas, em consequência das enchentes no Sul, o tarde demais já chegou.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]