Estamos ainda vivendo sob a égide da pandemia do SarsCov-2 em que foram necessários longos ou intermitentes períodos de isolamento e/ou distanciamento social. As consequências deste enfrentamento com a necessidades destas estratégias jamais vivenciado por nós, promoveram uma série de agravos dentro da saúde pública e que deverão ser entendidos e enfrentados no presente e no futuro em várias especialidades.
Sabemos que dentro da saúde pública uma das áreas mais afetadas foi a área da saúde mental. É intangível avaliarmos todas as dimensões, mas sabemos que não é pequeno o número de seres humanos afetados e que necessitarão de ajuda. Além disto, a saúde mental e a psiquiatria têm passado por grandes mudanças ao longo das últimas décadas e a chamada política antimanicomial no Brasil foi fundamental para evoluirmos para um cuidado mais humano e profissional.
O município de Campinas, graças ao trabalho conjunto realizado entre a sua Secretaria de Saúde, a Unicamp e o Hospital Cândido Ferreira, foi destacado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) por este esforço de desospitalização e cuidados dentro do mais alto nível de respeito aos direitos humanos na área de saúde mental (1).
Dados do Datasus, que são públicos, demonstram que no município de Campinas não se interrompeu este atendimento ao longo da pandemia, o que garantiu a nossa cidade a diminuição significativa da taxa de mortalidade por suicídio (situação extrema deste problema) de 7,3 por 100.000 habitantes em 2019 para 5,5 em 2021.
Para efeito de análise, no Brasil observou-se um discreto aumento de 6,4 para 6,5, neste período. Ao longo dos anos, a assistência em saúde mental foi aprimorando novas tecnologias de cuidado e de processos terapêuticos. Deixamos de olhar para o sofrimento mental como um sintoma moral e crescemos no conhecimento do adoecimento mental em sua complexidade e multe causalidade. Hoje, os transtornos mentais ganharam notoriedade por sua prevalência e pelo impacto social sobre a vida de milhares ou milhões de pessoas.
No campo da saúde pública, a assistência em saúde para estas pessoas passou de a oferta exclusiva de leito asilar e muitas vezes manicomiais, para a criação de uma rede rica em equipamentos de saúde territorializados, dentro da atenção básica e com caráter multiprofissional. Assim, foi possível ofertar de modo crescente e amplo, a assistência especializada a estes pacientes em diferentes complexidades terapêuticas, cuidando dos casos mais simples até os casos mais complexos.
E, para que o funcionamento desta rede seja efetivo, é importante que o gestor público, de qualquer nível federado, tenha um conhecimento da epidemiologia dos transtornos mentais e das vulnerabilidades dentro do seu território.
Temos a tendência de nos preocuparmos com os quadros mais exuberantes e graves tais como a esquizofrenia, os transtornos bipolares, os estupores depressivos e deixar de lado os casos de menor complexidade. Este grupo é que chamamos carinhosamente de “a turma do meio”. Hora, estes últimos são muito mais numerosos que os primeiros. Corresponde aos quadros de ansiedade, de síndrome do pânico, de depressão entre outros que perfazem mais de 80% dos atendimentos em saúde mental. Porém, de modo geral, encontram menos acesso aos cuidados em saúde mental do que aqueles com quadros clínicos mais graves.
Este olhar enviesado também está presente nas portarias de financiamento de Redes e Programas do SUS, onde existe um financiamento (ainda que insuficiente) para equipamentos de assistência de alta complexidade, mas não existe financiamento para ferramentas de cuidado de menor complexidade, levando muitos municípios a investirem apenas na frente de cuidado estimulada financeiramente pelo Ministério da Saúde.
A nossa querida “turma do meio” fica assim sem acesso ou com acesso restrito aos cuidados, agravando seus sintomas, precisando, mais adiante, de assistência à saúde mais complexa e cara.
Investir em equipamentos de menor complexidade, tais como centros de convivência e profissionais de saúde mental ligados à atenção básica, garantiria o acesso ao cuidado, em tempo oportuno e de qualidade de nossa “turma do meio”. Com esta estratégia, evitaríamos assim, os agravamentos dos quadros clínicos, do sofrimento destes pacientes ou da evolução para disfunções socioeconômicas mais sérias e graves.
Para um bom planejamento de Rede de atenção em saúde mental é importante não esquecer que a saúde pública não se faz presente para cuidar apenas dos casos mais graves. Mas sim garantir qualidade de assistência em toda linha de cuidado e estimular a promoção e prevenção dos agravos.
(1)- Guidance on Community Mental Health Services – Promoting person-centred and right-based approaches. World Health Organization – 2021.
Carmino Antonio De Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994) e da cidade de Campinas entre 2013 e 2020. Atual secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo.
Sara Maria Teixeira Sgobin é médica psiquiatra e atual diretora do Departamento de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.