O casarão tinha três pavimentos. As telhas eram europeias, azuis. O estilo lembrava chalé alemão. Na entrada, duas escadas se uniam. Mesmo proibida pela mãe, a menina Ana Maria, que residia nas proximidades, costumava passar em frente àquela grandiosa arquitetura localizada na esquina das ruas Conceição com Boaventura do Amaral, região central de Campinas. E a curiosidade despertada na jovem pelo casarão que ela via sempre fechado representou o embrião de uma obra.
O tempo passou e, já adulta, Ana Maria descobriu o motivo da preocupação da mãe. Aquela diferenciada construção, conhecida como Castelinho Azul, era uma das centenas de casas de prostituição que existia no espaço urbano de Campinas. Detalhe: a mais elegante de todas. O espaço, já extinto, é descrito com pormenores no livro “Pernas cruzadas, Meias rendadas: desvendando histórias de Campinas (1930 – 1970)” de autoria da mesma Ana Maria Negrão, hoje vice-presidente da Academia Campinense de Letras (ACL).
A obra que resgata a história da prostituição na cidade, aborda códigos morais e de éticas das famílias de meados do século passado, sem deixar de “passear” por situações e lugares simbólicos da emergente metrópole, será visitada em um evento na ACL nesta quarta-feira, a partir das 17h30.
“Vai ser uma roda de conversa, um sarau, entre os acadêmicos, convidados e aberta ao público. Será um encontro, uma integração, regada a quitutes e percepções literárias”, diz a acadêmica de 82 anos de idade e que tem nove livros publicados.
O fato da obra, lançada em 2013 pelo Centro de Memória da Unicamp, ter esgotado neste ano é um dos principais motivadores do sarau. Ana Maria já pensa em uma segunda edição, com várias outras histórias e um conteúdo que ampliará as atuais 192 páginas.
“Foram três anos de produção”, conta a autora que, ao iniciar o livro, tinha uma obsessão: saber como era a vida dos homens nos bordéis e prostíbulos de Campinas, uma cidade cercada por fazendas e que chegou a ser considerada a “Meca da Prostituição”.
“Tive que ir a campo colher depoimentos. O livro foi construído com base em entrevistas. Quase não tem pesquisa bibliográfica”, conta.
Buscar os reais personagens da época e arrancar deles detalhes sobre suas aventuras representaram desafios. No entanto, por meio de contatos, ela conseguiu entrevistar cerca de 80 homens, entre 75 e 83 anos de idade. Já a estratégia para ter acesso às confissões foi ousada. “Convidava eles para ir à minha casa para um bate papo, com comes e bebes, dentro de uma informalidade”, revela. O cenário propiciou um resultado além do esperado.
“Eles me falavam tudo. E eu percebia os olhos marejados, como se eles resgatassem uma virilidade perdida”, diz. “E após as conversas, muitos me ligavam depois para completar algo que tinham esquecido.” Nos diálogos, uma percepção da autora:
“Os depoentes me disseram que até hoje nada falam sobre o assunto com as esposas”, conta, ressaltando que o comportamento reproduz um costume da época.
“A vida familiar e a vida que acontecia dentro dos prostíbulos eram dois universos completamente distintos”, lembra. “A mulher era criada para servir o marido. Já o homem ia buscar o prazer fora de casa.”
Ana Maria admite que teve acesso a histórias picantes o que a obrigou a realizar uma trabalhosa operação de edição, diz. “Mas não caio na vulgaridade”, revela ela, que também ouviu cerca de 15 mulheres, antigas prostitutas da cidade.
Os detalhes das entrevistas resgatam personagens como Geni, dona de uma casa na avenida Senador Saraiva e que era famosa por iniciar a vida sexual dos garotos entre 12 e 14 anos de idade. “Normalmente, a primeira doença venérea dos filhos era comemorada pelos pais, que viam na iniciação sexual uma preparação dos meninos para a vida adulta”, relata a autora.
A avenida Senador Saraiva era conhecida como Rua Alegre, conta Ana Maria, em função de abrigar um grande número de prostíbulos. “Ali, era a baixa prostituição. Havia uma sequência de casas germinadas separadas por paredes rústicas de modo que os suspiros eram facilmente escutados entre os vizinhos. O mau cheiro também era uma das características do local”, comenta, acrescentando ser comum nos espaços os homens urinarem nas paredes após o ato para “evitar doenças venéreas”.
Uma outra alternativa dos homens para não serem vítimas de infecções era mais dolorida. “Muitos saiam dos prostíbulos e entravam nas farmácias de plantão para receberem aplicação de nitrato de prata no canal. Aquilo, dizem, doía demais”.
Uma dessas farmácias ficava na Avenida Benjamin Constant, quase esquina com a Rua Barão de Jaguara, um dos pontos de prostituição mapeados pela escritora, que incluía casas nas ruas Onze de Agosto, Barreto Leme e em torno do Mercadão. A Casa da Paraguaia e a Casa da Maria Lúcia eram alguns dos pontos mais conhecidos.
Atualmente, quando se fala em prostituição em Campinas a remissão é ao Jardim Itatinga. O espaço representou o destino da chamada “Operação Limpeza” que aconteceu na cidade em meados da década de 50. “Mulheres da alta sociedade, políticos e imprensa se uniram para expulsar as mulheres dos prostíbulos que se multiplicavam na região onde é hoje o Jardim Nossa Senhora Auxiliadora.
Os policiais invadiam as casas e arrancavam elas de dentro com muita violência. Todas foram direcionadas para o Campo das Éguas, uma área que pertencia à Fazenda Itatinga”, relata Ana Maria. O local, que se transformou em bairro e fica à margem da Rodovia Santos Dumond, já chegou a ser considerado o maior prostíbulo a céu aberto da América do Sul.