No livro do Gênese, terceiro versículo, temos o impacto da frase: “Fiat lux” (Faça-se a luz). Esta referência monoteísta, de base judaico-cristã, através da luz, abre todo o panorama da criação.
A iluminação permite ver, sugere vida ao possibilitar a visão, incluindo automaticamente os demais sentidos.
Assim foi entendido esse fundamento criacionista. Não se começou em um mundo surdo que passou a escutar, ou com certa anosmia que passou a captar odores.
A compreensão oftálmica sustenta muitos preconceitos e estigmas sobre a cegueira. Embaralhando aspectos políticos, interesses ocultos e evolução técnica, há cientistas que defendem suas especialidades, valorizando as áreas onde trabalham. Seria mesmo importante definir a pior restrição sensorial?
Ausências ou carências de som, de luz, de odores, de sabores, de sensações táteis, todas são realmente restrições muito aflitivas.
No entanto, os portadores de alguma deficiência sensorial são capazes de superar muitos dos seus incômodos.
Portadores de deficiência visual já aprenderam a viver no seu escuro, incomparavelmente melhor do que pessoas com boa acuidade ocular que estejam na escuridão.
É também impressionante observar, nos estudos sobre Sexualidade Humana, o que alguns deficientes físicos conseguem fazer com suas capacidades restantes. Chegam a desenvolver surpreendente erotismo com partes limitadas do corpo e dão lições espirituais de trocas afetivas. Amam melhor do que os considerados normais.
Deficientes físicos mais preparados para o amor! Isso permite uma reflexão crítica de que os normais seriam portadores de deficiência amorosa…
Poetas, filósofos, escritores, músicos, artistas em geral, clérigos e até cientistas reclamam mesmo da pobreza afetiva que assola a humanidade.
Os religiosos recorrem ao amor de Deus, pretendendo mostrar como os humanos estão longe deste modelo ideal. E reforçam a necessidade e a dependência Dele.
Em pleno terceiro milênio, os ateus e agnósticos continuam minoria. E a grande maioria tem uma fé religiosa, seguindo predominantemente o cristianismo.
Essa maioria crente inclui fiéis que processam uma fé vigorosa, difícil de ser abalada, uma convicção plena, cuja luz não diminui nunca. Diante de alguns episódios difíceis, traumáticos, essa iluminação ainda é capaz de ser aumentada.
A luz divina que o crente sustenta em sua alma tem que ser assim mesmo: poderosa, inabalável. E potencialmente mais forte se as necessidades demandarem. Os benefícios para este fiel genuíno são vários. Nas doenças graves, inclusive, pois a confiança em Deus proporciona uma segurança especial para o paciente enfrentar os tópicos e procedimentos dramáticos.
A luz divina deriva da crença, não é cientificamente provável nem comprovável. Pode ser uma ilusão, uma ideia mágica. O fiel que for questioná-la pode criar dúvidas, desacreditar no mistério. Ele poderia até perder a fé, mas há aqueles bem resilientes, que não fogem de questões delicadas, que as superam e reasseguram-se no conforto da iluminação misteriosa.
O crente deve, portanto, exponenciar a sua fé, frequente e insistentemente, para seguir com firmeza e resiliência, garantindo a salvação de sua alma.
Por seu lado, o descrente também pode enfrentar os riscos e dificuldades que a vida e a morte promovem. Se estiver seguro e protegido na sua descrença, tudo será mais tolerável e superável. E dentro do limite iluminado apenas pela ciência, sem chance de salvação da alma.
Em 2017, publiquei um livro (Ideias e Luzes – ed. Pontes) em que rememoro o episódio de Arquimedes com a expressão “Heureca!”.
As ideias criativas historicamente são representadas por uma iluminação. Nas tiras em quadrinhos, usualmente temos a “luzinha do Heureca”.
O iluminismo, o “século das luzes”, como diz o próprio nome, desponta preponderantemente no século 18, reforçando a racionalidade e a criatividade. E, prestemos bastante atenção: os iluministas iniciaram toda essa revolução sob o foco de simples velas…
Curiosamente, o que ilumina deveria esclarecer, nunca manter um enigma oculto na escuridão. E a iluminação que a religião propõe é essencialmente contraditória: é uma luz abstrata, de poder divino, e que mantém o mistério da fé.
As contradições cristãs também se configuram com as trevas do inferno. Afinal, esta escuridão infernal é um lugar cheio de fogo, portanto, bem iluminado…
Desde o fogo em cavernas, no Paleolítico, passando por lucernas, lampiões, até as lâmpadas incandescentes e o LED da atualidade, sempre ansiamos por luzes, muita, muita luz.
As luzes nos fascinam. Basta lembrar do que se cria na iluminação de um grande show pop.
Zygmunt Bauman, em seus pungentes trabalhos sobre as relações líquidas da modernidade e a fragilidade dos laços humanos, mostra que o celular aproxima os distantes e afasta os próximos. Entendemos que o mesmo pode ocorrer com a fé.
Impressionadas pelas luzes do amor de Deus, as pessoas ficam em uma espécie de celular divino e não interagem com amor humano. Fora os que não deixam de olhar a telinha, mesmo dentro de igrejas!
A iluminação física do amor humano não demanda mais do que uma vela sobre a mesa do jantar íntimo, suficiente para ativar extasiantes faíscas na alma dos apaixonados…
Joaquim Z. Motta é psiquiatra, sexólogo e escritor.