Neon é um gás nobre de tom roxo-alaranjado abundante no universo e usado em tubos luminosos, sinalização e publicidade, segundo a Wikipédia. No cinema, pode ser aplicado quando se tem a intenção de soar falso, brega ou irreal. Se a vida fosse escrita em neon, ela seria como “Depois do Universo” (Brasil, 2022, drama, 127 min.), de Diego Freitas.
Não poderia ser mais irreal o filme que chegou ao top dez em 40 países na plataforma de streaming Netflix. O filme é apanhado inacreditável de clichês. Se fosse obra musical, seria como se o autor juntasse pedaços de composições numa partitura – numa espécie de música-Frankenstein.
O filme amarra ideias, imagens, sequências, frases e soluções de cenas que cansamos de ver na tela grande – com a diferença de que são emolduradas com neon.
Quando aparece o principal espaço de concerto do País (e um dos melhores do mundo), a Sala São Paulo, parece que estamos em Milão, Paris ou Berlim – ninguém dirá que a sala (nascida com o quase fim das estradas ferroviárias, a Estação Júlio Prestes, magnífico edifício da Capital) convive em desarmonia com a Cracolândia, um dos lugares mais tristes do mundo.
E vemos a belíssima Estação da Luz e o Teatro Municipal, o prédio do hospital onde trabalha o “mocinho”, o médico Gabriel (Henrique Zaga), o estúdio onde a pianista Nina (Giulia Be) ensaia, o lugar onde ela faz hemodiálise e até a periferia onde mora e nas externas (jardins, ruas): tudo desenhado com cores de neon, que dão ao filme a sensação fake da vida. É outro mundo, diferente daquele que conhecemos.
E, sendo pianista, Nina irá tocar música clássica e o que se ouve são pérolas do standard (bonitas, claro, mas batidas) de Chopin, Beethoven etc, que qualquer ouvido, mesmo os menos atentos, já escutou – como se o filme tivesse a proposta de apresentar música erudita (popular) para povo.
O roteiro do diretor e de Ana Reber não foge à lógica. Trata-se de colcha de retalhos citados de outros filmes, seja o anticlímax de dizer que não passou no concurso, mas passou; seja porque Gabriel é otimista 24 horas contra a pessimista Nina e tira soluções de todas as cartolas; seja porque o tal médico é lindo, anjo de bondade, fino, educado, liberal (mora com rapaz gay) e tem problemas com o pai (João Miguel).
Com um detalhe: o espectador nem precisa temer o spoiler porque o desfecho está delineado desde o início. Reconheça-se, no entanto, que mesmo trabalhando com obviedades do manual do roteiro, não é fácil alinhavar tudo e lhe dar unidade. Pois o roteiro tem essa qualidade, a começar pelo bom prólogo – se perde no final quando tenta encerrar o filme umas quantas vezes e não consegue.
Alguém o comparou com “A Culpa é das Estrelas”. Há evidente consonância com o longa de Josh Boone, 2014, e não só porque estrelinhas aparecem aqui e ali, mas pela similaridade com o título.
Ocorre que o título, baseado no best-seller de John Green, se inspira no monólogo de Júlio César, na peça homônima de Shakespeare – citação sempre bem-vinda. Mas o brasileiro cita a citação e se torna, perto do dramaturgo inglês, pretensioso – quer dizer, passa do ponto.
Não é pecado fantasiar a vida. A dramaturgia pertence a categoria de que tudo cabe, pois, nela, inventamos, poetizamos, sonhamos. O problema de “Depois do Universo” é o modo de conduzir a realidade de uma garota com lúpus (doença autoimune que ataca várias partes do corpo), a profissão dela, o tratamento e as condições adversas em tom de romance adolescente em que tudo dá (quase) certo.
O teor dessa história é melodramático ao estilo das novelas mexicanas (e longe dos melodramas de Pedro Almodóvar, mestre na área), em que tudo é over: da bondade de Gabriel ao desfecho no qual se propõe a falar sobre tragédia.
Em “Tudo sobre minha Mãe” (Almodóvar, 1999), Manuela (Cecilia Roth) perde o filho em acidente e tem de decidir se doa ou não os órgãos do rapaz – ela chorando sobre o corpo do menino jogado no asfalto e gritando “hijo, hijo mio” é de cortar os pulsos. Aquilo é tragédia pura, marcada pela dor, lágrimas e sofrimento.
Uma coisa é a dor da tragédia real, inescapável e que não se ameniza, presente no nosso dia-a-dia. Outra é simular a tragédia (algumas cenas de dor ao final de “Depois do Universo” são afronta ao sofrimento) e, com medo de assumi-la, a transfere para o pantanoso terreno da fantasia. E, como se imagina, pintada de neon.
O filme está disponível no Netflix
João Nunes é jornalista e crítico de cinema