Quando eu ouvi pela primeira vez essa música provocante e encantadora de Chico César, fiquei impressionado. “Eu sei como pisar no coração de uma mulher, já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei”, insiste o refrão. Uma vez, comentando a letra, Chico declarou: “Pra mim é uma canção que antecipa questões de transicionamento. As pessoas olhavam para mim: ‘Como você já foi mulher?’. Gente, é uma música, não é uma coisa autobiográfica”, explicou o que é inexplicável. Essa é a voz de outro eu. Só uma sensibilidade como a de Chico César poderia expressar, polemicamente, essa ideia de forma tão perfeita. Colocar-se no lugar do outro é sempre um ato perigoso e incômodo. Por isso, para além desse tal sentido de transição de gênero (que em si mesmo seria super rico e importante) eu gosto de pensar nessa música como a expressão de altíssima e radical alteridade: falar a voz do outro e ser o que ele é. Ou pelo menos imaginar, vivenciar o que ele vive, sofrer o que que ele sofre. No caso, a mulher – ou as mulheres.
Saber o que é ser mulher deveria ser o mote central de toda alteridade masculina, máscula, fálica. O homem deveria mesmo, dizem as minhas amigas, ser mulher por um dia.
Talvez dizendo assim, ou cantando como Chico – “já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei”, talvez assim, muitos dos machismos em vigor seriam superados. Não tem outra lição senão essa, para que a sociedade mude por completo: colocar-se no lugar do outro é uma boa receita para muitos males nossos de cada dia. Esse é o jeito para sairmos do nosso mundinho de paredes mofadas.
Para o filósofo Emmanuel Lévinas, esse reconhecimento do outro se apresenta como o fundamento de todas as relações éticas: pelo rosto do outro reconhecemos a transcendência de nós mesmos, a partir do que o outro é para além de mim, a partir do que eu mesmo sou na presença desse outro que, mostrando para mim o seu rosto, apresentando-se, fazendo-se presente diante de mim, emite o seu apelo e reivindica a minha responsabilidade.
“Não matarás” é o mandamento superior que se reflete nesse rosto. É isso que eu, tendo sido mulher, encontro nos rostos femininos que são o meu mesmo: em tempos de feminicídio, esse é um assunto urgente.
No rosto dessa mulher que sei ser porque fui, vejo também o mandamento máximo da vida que quer viver – “não matarás” ou, em outras palavras, deixe viver, faça tudo para que viva, respeite o vivo que aí está, celebre sua vida com respeito, ajude para que ela possa se tornar quem é…
Simone de Beuvoir, que escreveu O segundo sexo, chamou atenção para a urgência de olharmos esse rosto feminino para além dos estereótipos. A pergunta sobre quem é a mulher que me olha deve, segundo a filósofa, superar a ideia de que ela é um útero, uma matriz reprodutiva, como se a maternidade fosse a quintessência de sua existência. Esse é o grande grilhão da história que aprisiona as mulheres a serviço dos seus maridos, submissas e subjugadas, como querem os machos escrotos que, agora, cantam de galo nas redes sociais da chamada machosfera. Seu lema, descobrimos esses dias, é “processo ou bala”, contra mulheres que ousam questionar os seus impropérios.
Isso em pleno século XXI, dá pra acreditar?
Simone mesmo reconhece nessas posturas um “complexo de inferioridade”: “ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade”, afirma.
O preconceito, como se sabe, na maior parte das vezes, é filho do medo – não raro um medo de si mesmo. O resto é querela desnecessária, que leva a exageros e desvia do assunto principal, que é o reconhecimento de direitos e de igualdade plena entre os sexos. A mulher, afinal, é um ser pleno de liberdade para fazer a si mesmo, conforme desejar, a partir de si mesma. Ela resiste. Ela se inventa. E ao fazê-lo, inventa o mundo. E quem sabe, até, inventa um novo jeito de todo homem ser, um novo jeito de toda sociedade ser.
Jelson Oliveira é filósofo, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor do curso de Pós-Graduação em Ética da Escola de Educação e Humanidades da PUCPR.