O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, MST, é um dos maiores e mais importantes movimentos sociais do mundo todo, construído por uma história de quase 40 anos de luta, composto hoje por cerca de quinhentas e cinquenta mil famílias assentadas e acampadas, tendo como principal reivindicação o acesso a terra para moradia e produção de alimentos através de uma reforma agrária popular e democrática, como previsto pelo Capítulo III da Constituição Federal de 1988.
Reconhecido desde 2018 como a maior fonte produtora de arroz orgânico da América Latina, o MST tem papel fundamental no combate à fome no Brasil (o que ficou ainda mais evidente no atravessamento da pandemia), não só gerando emprego e renda a pequenos produtores, mas também doando centenas de toneladas de alimentos saudáveis a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica negligenciadas pelo governo e por empresas que visam lucro acima da vida. Só na última Feira da Reforma Agrária, em maio deste ano, foram comercializadas 560 toneladas de alimentos e doadas 38 toneladas a 24 entidades de assistência social de São Paulo, onde foi realizado o evento. Entre os alimentos estão arroz, feijão, mandioca, batata, tomate, milho, café, leite, queijo, hortaliças, frutas e legumes variados.
Reação ao aumento de concentração de terras nas mãos de latifundiários durante a ditadura civil-militar, a ação organizada do MST ocupando propriedades improdutivas teve início no Paraná, em 1984 e, mesmo diante da repressão violenta do Estado e do sistemático boicote da grande imprensa, se espalhou pelo país todo inspirando a construção de um modelo social mais justo e solidário, capaz de reduzir as desigualdades históricas em que o Estado brasileiro foi fundado.
Muitas das enormes fazendas que hoje são ocupadas em protestos do Movimento, a maioria delas com centenas ou milhares de hectares de extensão (1 hectare = 10.000m²), foram, no passado colonial-escravista, terras tomadas a força de povos indígenas pela perversa colonização europeia, ou, pior, griladas através de falsificação de documentos durante a implementação da Lei de Terras na segunda metade do século XIX, adquiridas de forma abusiva e por meio de extorsão, até mesmo pelo uso da força armada diante da negligência do Estado em proteger comunidades camponesas, ribeirinhas e de pequenos produtores.
Nessa época, enquanto colonos italianos, alemães, espanhóis, eslavos e japoneses trocavam trabalho por lotes de lavoura, construindo o patrimônio que deixariam a seus herdeiros, as pessoas de pele preta e parda continuavam escravizadas em nosso país e os povos indígenas seguiam sendo massacrados por mercenários e bandeirantes que agiam a serviço de barões, coronéis, senhores e herdeiros da realeza invasora das terras brasileiras.
Atualmente, o Incra e o IBGE estimam que haja cerca de 4,3 milhões de pequenas e médias propriedades de agricultura familiar no Brasil, responsáveis pela produção de quase 75% dos alimentos que consumimos diariamente. As propriedades com até 10 hectares somam cerca de 47% do total de propriedades rurais, mas ocupam só 2,3% do espaço agrário do país. Em compensação, os latifúndios com mais de 1000 hectares totalizam apenas 0,9% das propriedades, mas se estendem por 45% da área rural brasileira, destinados essencialmente à produção de gado bovino, soja e algodão, produções majoritariamente mecanizadas e voltadas a exportações para a China.
O MST está a lado do primeiro grupo – o dos pequenos e médios produtores de alimentos, que contribuem na geração de empregos e no abastecimento do comércio local, com produtos saudáveis e acessíveis, utilizando técnicas de plantio e manejo sustentáveis, menos agressivas ao meio ambiente. As propriedades ocupadas pelo Movimento fazem parte do segundo grupo, controlado principalmente por grandes empresários do agronegócio, políticos da bancada ruralista, especuladores, banqueiros e figurões da grande imprensa. Não à toa, as tentativas de criminalizar o MST são incessantes por parte dos grupos hegemônicos, que tentam contaminar a população disseminando medo e desinformações a respeito das lutas protagonizadas pelo movimento social.
É fato que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo quando se fala em lutas por terra. Assassinatos de lideranças indígenas, quilombolas, ambientalistas e pessoas envolvidas na defesa dos povos originários e do campesinato, infelizmente não são casos isolados. E, embora o MST tenha volume e presença em manifestações populares, seus líderes e representantes nunca apontaram armas de fogo para ameaçar as autoridades ou mesmo para reagir à violência que sofrem em reintegrações de posse truculentas, como no massacre em Eldorado do Carajás, em 1996.
Mesmo ocupando propriedades improdutivas, afrontando a garantia constitucional à propriedade privada, não é o MST que coleciona terras invadidas ilegalmente e desmatadas para exploração de madeira e garimpo clandestino. Por mais que haja violação de cercas e porteiras, o MST, em quatro décadas de luta por terra pra quem nela trabalha, jamais vandalizou o Congresso, o Palácio do Planalto e o STF, ou buscou romper com a ordem do Estado Democrático de Direito de nosso país quando candidaturas apoiadas foram democraticamente derrotadas em eleições. O MST nunca derrubou governos eleitos, não tem conluio com milícias do crime organizado, não envenena rios e florestas, não usa o nome de Deus para extorquir fieis e não fomenta guerrilhas para exterminar quem pensa diferente.
Evidente que, num movimento dessas proporções, há pessoas mal intencionadas, que corrompem as bandeiras de luta social para satisfazer interesses particulares, atuando em benefício próprio – assim como acontece em empresas privadas, em governos eleitos, em igrejas e em outros países. Mas é inegável que a persistência das famílias do MST e a lealdade a seus propósitos tem servido para sustentar e fortalecer as lutas populares por justiça social, dignidade e combate às desigualdades, à fome e à violência contra grupos marginalizados, sobretudo no campo.
Quem, afinal, tem medo do MST?
Só tem a perder com uma reforma agrária popular e democrática quem lucra com os espólios do colonialismo e da escravidão, herdeiros das injustiças e investidores de negócios que beneficiam pequenos grupos de multimilionários e bilionários à custa de destruição ambiental e exploração social.
A luta dos trabalhadores rurais sem terras é por emprego e salário digno no campo, acesso a terra pra trabalhar e produzir, lar pra morar, alimento saudável pra combater a fome com soberania e segurança alimentar.
Josué de Castro e Milton Santos, brasileiros que estão entre os mais importantes professores e cientistas sociais do século XX, chamavam a atenção para como a fome e o medo dos que têm fome dividem e polarizam a sociedade. Ao invés de criminalizar e combater os que têm fome, é preciso subverter a lógica de exploração da miséria e legitimar, fortalecer e ampliar políticas públicas capazes de erradicar a fome e estender o direito à vida digna a todo e cada cidadão e cidadã sobre solos brasileiros – e do mundo inteiro.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.