A situação vivida por cerca de dois milhões e meio de sul-rio-grandenses nos últimos dias é devastadora: vidas perdidas, casas destruídas, comércio, escolas e hospitais parados, sonhos abandonados e a sensação de insegurança, medo e impotência diante do poder da natureza e do oportunismo de políticos, empresários e subcelebridades que tentam lucrar com a tragédia humana.
Enquanto governos, órgãos internacionais, ONGs e, principalmente, a própria população somam esforços para criar condições básicas de sobrevivência num cenário caótico, ambientalistas, geógrafos e ativistas reforçam o que vem sendo ignorado há décadas: o modelo urbano-industrial predatório, baseado na especulação imobiliária e no desmatamento, assim como as monoculturas latifundiárias, são sistemas insustentáveis!
Estima-se que mais de 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa tenha sido extinguida no Rio Grande do Sul entre 1985 e 2021, equivalente a quase um terço da área original dos Pampas, para dar lugar à expansão de manchas urbanas e, sobretudo, ao cultivo de soja para exportação.
A devastação do bioma nativo, além da evidente destruição do habitat de dezenas de milhares de espécies de plantas, aves, pequenos mamíferos, répteis e anfíbios, aumenta consideravelmente a emissão de CO2 na atmosfera terrestre, contribuindo para a intensificação do aquecimento global.
Numa região de relevo colinoso, de extensas pradarias, por onde passam rios de planície que desaguam em lagoas, como a laguna dos Patos (onde está a foz do rio Guaíba), lagoa Mirim e lagoa Mangueira, qualquer alteração nas dinâmicas ecológicas tende a ser danosa. Nas cidades, os solos são impermeabilizados, as matas ciliares são removidas, os rios são retificados e enterrados, para receber o esgoto de populações que crescem em áreas onde sobem, com rapidez, torres de empreendimentos imobiliários e por onde se aglomeram moradias precárias de populações vulneráveis.
Enquanto isso, a destruição do Cerrado e da Amazônia também cresceu num ritmo voraz nas últimas décadas, com incêndios em proporções inéditas durante o governo de negacionismo e antiambientalismo de Bolsonaro entre 2019 e 2022, dando retaguarda para o desmonte de políticas de proteção ambiental no estado do Rio Grande do Sul e em muitos municípios, inclusive Porto Alegre. Em três anos, Jair Messias cortou 93% do orçamento das ações destinadas a combater mudanças climáticas, além de esvaziar órgãos de proteção ambiental e atacar, sistematicamente, iniciativas de proteção ao meio ambiente.
Eduardo Leite, governador tucano do RS, alterou quase 500 pontos do Código Ambiental do Rio Grande do Sul em 2019, afrouxando regras de proteção de unidades de preservação, abrindo espaço para a especulação imobiliária a ao avanço irresponsável do agronegócio numa sobreposição abertamente defendida pelo neoliberalismo da economia sobre a ecologia, do interesse privado sobre o direito público, do individualismo sobre a vida coletiva.
Muitos Senadores e Deputados que tentam se promover fazendo discursos de apoio ao Rio Grande do Sul na tribuna foram responsáveis pela aprovação do Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651, de 2012), que trouxe profundos retrocessos às políticas de proteção e preservação ambiental para satisfazer os desejos da bancada ruralista e dos setores empresariais que instrumentalizam o Congresso Nacional há décadas, governando em causa própria ao invés de priorizar os interesses do povo, pensando nas próximas gerações.
Como estão ajudando o povo sul-rio-grandense os especuladores e megaempresários do agronegócio e da urbanização mercantil diante da tragédia que atinge 90% dos municípios do estado, incluindo Porto Alegre? O governo Lula anunciou um pacote de R$50,9 bilhões para medidas de auxílio às famílias atingidas. As políticas de apoio incluem suspensão do pagamento das dívidas do RS à União, pagamento de auxílio de R$5.100 para cerca de duzentas mil famílias que perderam seu lar nas enchentes e autorização para saque do FGTS antecipado. Medidas de apoio a pequenos comerciantes e pequenos produtores rurais também serão priorizadas. O Novo Banco do Desenvolvimento (Banco do BRICS), comandado pela ex-presidenta Dilma Rousseff, liberou R$5,75 bilhões para auxiliar na reconstrução do Rio Grande do Sul.
Movimentos sociais e ONGs têm arrecadado e doado, através dos Correios, dezenas de toneladas de alimentos, roupas, calçados, cobertores e produtos de higiene para as pessoas atingidas alojadas em abrigos improvisados. A cozinha solidária do MST, por exemplo, tem servido mais de duas mil refeições gratuitas diariamente em Porto Alegre. Equipes voluntárias somam esforços com a Defesa Civil para resgatar vítimas que seguem desabrigadas, incluindo cães, gatos e até cavalos. Estimava-se, em 20 de maio, mais de 70 mil pessoas em abrigos, quase 600 mil desalojadas, 161 óbitos e 82 pessoas desaparecidas.
Leite, o governador que fez uma live nas redes sociais alertando sobre o “perigo” de doações “em excesso” para o comércio local, preferiu, diante dos esforços do governo federal, movimentos sociais e órgãos internacionais, agradecer ao bilionário Elon Musk pela doação de antenas de internet via satélite para a população que vê uma vida inteira de trabalho duro ser destruída, assim como um futuro interrompido para jovens que estão sem acesso a escolas, repensando sonhos e expectativa no mundo real.
Até para os terraplanistas que negam o evidente colapso ecológico provocado pelo neoliberalismo predatório é chocante confrontar a realidade.
Nos ultrajantes passeios de jet-ski, fazendo turismo de tragédia, é impossível não se comover com a impotência do ser humano, mesmo o mais abjeto e arrogante, diante da natureza. Fora do mundo fantasioso de ódio e fake news, os entulhos espalhados pelas cidades vão ficando aparentes enquanto a água misturada ao esgoto começa a baixar, deixando na superfície a lama cheia de lixo, escombros e animais mortos.
Com a aproximação do inverno, o frio passa a ser mais um problema grave, principalmente para as pessoas que aguardam em abrigos, emocionalmente fragilizadas, fisicamente debilitadas, subnutridas e doentes, apesar do gigantesco esforço de equipes que se dedicam a garantir a segurança e o conforto desses refugiados climáticos que não estão na Palestina ou no Haiti, mas bem aqui, no Brasil, a oitava maior economia do mundo. Em locais fechados, vírus como Influenza e Covid-19 podem ganhar proporções epidêmicas, com efeitos graves em pessoas com comorbidades e não vacinadas. O acúmulo de lixo e água contaminada também é agravante, pela potencialização de doenças como leptospirose, hepatite e dengue.
Para além das medidas emergenciais, haverá, ainda, um longo e custoso caminho de reconstrução quando a água baixar. Mais ainda: será necessário repensar modelos de uso e ocupação dos territórios, considerando que o colapso climático-ambiental não é uma ameaça sensacionalista para o próximo século, mas a realidade que já estamos enfrentando, aqui e agora.
Grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza e Belo Horizonte estão preparadas para enfrentar eventos climáticos extremos, cada vez mais comuns diante do desequilíbrio ambiental do Antropoceno?
Repetir os erros que levaram a essa e tantas outras catástrofes ecológicas em vários lugares do mundo seria admitir a responsabilidade sobre mais mortes, mais destruição e um destino terrível que não é causado pela fúria da natureza, mas por negligência e egoísmo do ser humano.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.