A pandemia segue e nada de novo se anuncia. E assim espero a chegada da chuva que bem necessitamos. Aguardo também a chegada do bom vento leste para levar uma carta de saudade ao amigo e poeta Raimundo Oswald Barroso, que mora lá em Fortaleza, no bairro Aldeota. Tenho procurado por ele na Internet há anos e, agora mesmo, tentei mais uma vez. Nada. Melhor esperar a próxima ventania e ver no que vai dar.
Neto Amaral, ótimo compositor e um original intérprete de sambas antigos também anda sumido. Seu celular só dá inexistente e para ele também vou mandar uma carta no vento. O cantador Djalma Guanambi vai ganhar uma carta nas águas do Rio Atibaia, ele que é filho das terras secas do sul da Bahia, quase enquadrada com a região do Jequitinhonha. E na carta vou mandar saudade para um nosso amigo comum, Paulo Gabiru, o maior cantador das águas santas do Rio São Francisco. E na carta vou mandar saudade à Elísia, a musa do Djalma Guanambi, ela que também é senhora das palavras, a melhor revisora que o Diário do Povo já teve.
E agora vou me ajeitando para lavar as frutas e legumes. E assim lembro da minha mãe passando sabão na minha cabeça e pelo resto do corpo. E depois me secando com uma toalha rala de tanto uso – nem tanto pelo tempo, mas por conta dos muitos filhos. A minha toalha pessoal só apareceu na minha vida depois que saí de casa e fui morar em uma república de estudantes. Era uma casa antiga no Largo da Santa Cruz, no Cambuí. Ali por volta de 1978 a República Palácio se desmanchou e logo em seguida a casa se transformou no Bar Bate Papo. Tive uma certa participação nessa história, mas, pelo complexo enredo acontecido, vou contá-la em outro momento – não por preguiça agora, mas por falta de espaço mesmo.
Algumas saudades são fantásticas. Cheiro de infância, por exemplo, o de lavanda com a nicotina do cigarro do meu pai, tirando a minha febre, trocando a blusa do pijama molhada de suor e eu fazendo de conta que dormia apenas para sentir as suas mãos, pai austero que era com os filhos, um quase nada de carinho quando tudo caminhava bem. Mas foi um bom marido: oito filhos – a apaixonado pela companheira, a quem jamais negou um abraço de cintura e danças. Enfim, tive infância de aromas e raros carinhos.
No velho Taquaral do início dos anos sessenta conheci o aroma da cidade exalado pelo capim que nascia ao lado da Lagoa do Taquaral – e do perfume que restava das amorosas madrugadas que viviam as moças da zona do meretrício, casas simples, de jardins bem cuidados, muros baixos, luminárias se confundindo com o novo vermelhão da manhã que chegava. Chico Buarque cantou a sua Geni. E as minhas Genis do Taquaral só aguardavam um menino chegar com a sua bicicleta trazendo leite, pão e manteiga. Elas se libertavam e libertavam o bairro naquele instante de respeito que recebiam após apaziguar homens que desejavam um pedaço de amor, ou apenas um naco de carinho. E bem me lembro do aroma que exalavam…
E veio a ditadura militar, o politicamente correto das senhoras beatas escandalizadas com a difícil chamada vida fácil (Jorge Amado), o oportunismo de altas autoridades para querelar contra as suas putinhas, e lá se foram todos, a hipocrisia e as autoridades se acanhar no gueto do Jardim Itatinga. E livres dos olhares taquarenses os amantes voltaram a se amar como antes, bem longe da cidade.
Em algum lugar do passado a cidade trocou pequenos pecados por respeitáveis negociatas. E corruptos são tão nocivos que converteram putas em garotas de programa. E invadiram as páginas de revistas e jornais.
Felizmente, estou envelhecendo e ainda conservando valores peneirados entre a carne, a consciência cívica e a dúvida a respeito de alguns dogmas cristãos. E disso não me arrependo. Afinal, alguém tinha que levar leite, pão e manteiga para as meninas do Taquaral. E é por isso que sigo entregando saudade aos amigos.
Bom dia.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico