Outubro de 1992. Há exatamente 30 anos, o Brasil vivia um verdadeiro turbilhão político com o afastamento do então presidente Fernando Collor de Mello, em processo que culminaria na cassação de seu mandato por motivo de crime de responsabilidade, três anos após derrotar o ainda emergente candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva, nas primeiras eleições diretas do País desde 1960.
Foi nesse contexto que ocorreu a 16ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, realizada entre os dias 17 e 31 de outubro de 1992, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), um dos mais importantes espaços culturais brasileiros, localizado na Avenida Paulista, no coração da cidade de São Paulo.
Idealizado pelo célebre empresário e jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), o MASP foi fundado em 1947, mas ocupa desde 1968 o icônico edifício com vão livre projetado pela renomada arquiteta modernista ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992).
Berço e palco frequente do tradicional festival criado pelo crítico de cinema Leon Cakoff, em 1977, repetido todos os anos desde então, até os dias de hoje, o MASP havia recém sido o epicentro das históricas manifestações populares pró-impeachment de Collor.
No dia 11 de agosto de 1992, data em que se celebra o Dia do Estudante, o MASP serviu como ponto de partida de uma passeata com participação de cerca de 10 mil jovens, que ficariam conhecidos como “caras-pintadas” pois saíam às ruas com os rostos pintados de verde e amarelo. O movimento ganhou corpo e, posteriormente, outros atos foram realizados ao redor do Brasil, reunindo não mais milhares, mas milhões de pessoas.
Diante do efervescente clima político do momento, a 16ª Mostra de Cinema de São Paulo aderiu ao movimento do impeachment de Collor, retratado na arte do pôster criada pelos fotógrafos Eder Chiodetto e Rudi Böhm (imagem acima).
Primeiro presidente democraticamente eleito desde o fim da ditadura militar no Brasil, superando Lula com 53% dos votos no segundo turno do pleito de 1989, convocado após a promulgação da Constituição Federal de 1988, Fernando Collor tomou posse no dia 15 de março de 1990, mas não chegou a cumprir o mandato à época de cinco anos por causa de um escândalo de corrupção que acarretou em seu impeachment, no dia 30 de dezembro de 1992.
No dia 2 de outubro de 1992, logo após a instauração do processo de impeachment no Senado, Collor havia sido afastado da presidência da República e o vice-presidente Itamar Franco assumido provisoriamente o governo.
No dia 29 de dezembro de 1992, exatamente três meses após a abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, Collor apresentou carta de renúncia, mas isso não impediu que, no dia 30, acabasse condenado à perda do mandato presidencial e à inelegibilidade por oito anos.
Diretor de primeira viagem
Entre os ilustres participantes convidados da 16ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1992, havia um diretor de primeira viagem chamado Quentin Tarantino, ainda desconhecido do grande público, que viria a se tornar um dos mais importantes e influentes cineastas de sua geração, para não dizer de todos os tempos.
Na ocasião, em sua primeira passagem pelo Brasil, aos 29 anos, Tarantino desembarcou em São Paulo no dia 28 de outubro de 1992, uma quarta-feira, véspera da primeira exibição brasileira de “Cães de Aluguel” (“Reservoir Dogs”), seu filme de estreia como diretor, em sessão noturna realizada no Cinearte 1, na Avenida Paulista.
Uma das vedetes da programação daquela edição da Mostra, esse longa-metragem escrito e dirigido por Tarantino também foi exibido na sexta-feira, dia 30 de outubro de 1992, na sessão da meia-noite do CineSesc, na Rua Augusta. Por fim, no sábado, 31, último dia do festival, houve mais uma projeção, desta vez durante a tarde, no Grande Auditório do MASP.
“Nesse noir dos anos 90, ladrões estressados após um roubo frustrado se atacam raivosamente, mas também acham tempo para discutir o fenômeno Madonna, entre outras coisas absolutamente cotidianas”, descreveu a Folha de S. Paulo, em reportagem de página inteira publicada na edição de 29 de outubro de 1992, abrindo o caderno Ilustrada.
O olhar campineiro da história
“Na época, como eu trabalhava na Folha, minha editora falou que havia um cineasta novo na cidade e me pautou para entrevistá-lo. Eu não queria ir porque não tinha assistido ao filme, mas ela disse que, segundo o Leon Cakoff, o rapaz iria estourar e que a gente não podia perder essa chance, então lá fui eu entrevistá-lo”, relembra o jornalista e cineasta campineiro Hamilton Rosa Júnior, autor do livro “Era Uma Vez…Tarantino”, lançado em 2020, que reúne ensaios sobre todos os filmes do consagrado diretor norte-americano hoje à beira dos 60 anos.
“Cheguei lá e achei o cara muito engraçado. Ele foi falando do filme até que, ao perceber que eu não tinha visto o filme, me perguntou: ‘cara, e aquela cena de perseguição de helicópteros, você gostou?’. E eu respondi: ‘claro, foi uma das cenas que mais gostei’. Publiquei a entrevista, me referindo inclusive a isso e, no dia seguinte, fui à premiére do filme, com a presença dele no cinema”, prossegue Hamilton.
“O Tarantino entrou na sessão e sentou bem atrás de mim. O filme passou e aí descobri que não tinha nenhuma cena de perseguição de helicóptero. Quando o filme acabou, todo mundo levantou para aplaudir, ele agradeceu e, antes de ir embora, olhou para mim rindo e perguntou: ‘linda a cena do helicóptero, não?'”, conclui a pitoresca história.
Quase 25 anos depois de sua primeira passagem pelo Brasil, ocorrida em 1992, Tarantino retornou ao País para a divulgação de seu oitavo filme, “Os Oito Odiados”, em novembro de 2015, às vésperas da abertura do processo que resultaria no impeachment da presidente Dilma Rousseff, em agosto de 2016. Portanto, se Tarantino retornar ao Brasil, quem for presidente que se cuide!
Com 99 minutos de duração e trilha sonora marcante, como de costume, “Cães de Aluguel” possui um elenco afiado composto pelos atores Harvey Keitel, Tim Roth, Steve Buscemi, Michael Madsen, Chris Penn, Lawrence Tierney e Edward Bunker, além do próprio Tarantino.
Oficialmente lançado nos Estados Unidos no dia 23 de outubro de 1992, após percorrer o circuito de grandes festivais internacionais como Sundance e Cannes, “Cães de Aluguel” só entrou em cartaz nos cinemas brasileiros no dia 4 de junho de 1993, cativando uma legião de fãs que a partir dali se tornariam grandes devotos do trabalho de Tarantino.
Modelagem à la Tarantino
O universo cinematográfico criado por Quentin Tarantino é um prato cheio para o artista plástico paulista Caio Morel, de 39 anos, dono de um estúdio de modelagem em Vinhedo, na região de Campinas, com um catálogo de peças feitas à mão que representam grandes ícones da cultura pop, principalmente do cinema e da música.
Cinéfilo desde criança, fortemente influenciado pelo gosto do pai, Caio Morel tinha apenas 12 anos de idade quando assistiu pela primeira vez a “Cães de Aluguel”, em 1995, ainda em fita VHS, logo após se encantar com “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, sua porta de entrada para o cinema de Tarantino, também através do videocassete. Lançado em 1994, “Pulp Fiction” rendeu ao diretor conquista da Palma de Ouro, prêmio de maior prestígio do Festival de Cannes.
A paixão do rapaz pelo cinema é herdada do pai, também fascinado pela sétima arte e assíduo frequentador das videolocadoras do passado. “Sempre gostei bastante de assistir filmes, desde que eu tinha uns cinco ou seis anos de idade já havia uma mística muito grande em torno disso e era uma experiência bem intensa. A gente ia para a locadora e alugava uns 10 filmes de uma vez só, uma coisa de louco, nem conseguíamos assistir tudo no fim de semana”, descreve Caio.
A galeria de personalidades em miniatura da loja de Caio Morel conta com dois personagens de “Cães de Aluguel”, Mr. Pink e Mr. White (foto acima), interpretados pelos atores Steve Buscemi e Harvey Keitel, respectivamente. Porém, o filme que domina as prateleiras é “Pulp Fiction”, com bonecos de Samuel L. Jackson como Jules Winnfield, John Travolta como Vincent Vega, Uma Thurman como Mia Wallace, além do próprio Tarantino como Jimmie Dimmick.
“Minha cabeça explodiu com a história não-linear e as conversas que se estendiam longamente. De repente, você entendia que aqueles gângsteres também eram pessoas normais. Eu nunca tinha visto nada parecido, embora tivesse apenas 12 anos, mas realmente era uma novidade na época. Eu fiquei hipnotizado e assisti três vezes seguidas”, recorda-se Caio Morel, sobre a sua reação diante do violento, sangrento e inovador “Pulp Fiction”.
A mais recente figura “tarantinesca” reproduzida pelo talentoso jovem artesão da RMC foi o vilão Calvin Candie, personagem interpretado pelo ator Leonardo DiCaprio no filme “Django Livre” (2012). E não deve parar por aí. Caio Morel ainda pretende ampliar o leque. “O Tarantino cria personagens como ninguém e sempre conta com atores muito bons. Tem muita coisa que ainda dá para fazer. Quem sabe o Brad Pitt ou o Christoph Waltz em ‘Bastardos Inglórios'”, cogita.
“O Tarantino provavelmente é o diretor que mais mexeu comigo e mais me cativa”, aponta Caio Morel, que também cita com grande entusiasmo os lendários diretores Steven Spielberg e Martin Scorsese como suas maiores influências do mundo do cinema. “É uma briga de foice, mas com certeza ele [Tarantino] está no meu panteão”, decreta.
“Até hoje, o meu pai acha que ‘Cães de Aluguel’ é o melhor filme do Tarantino. Eu tenho dúvidas, mas fiquei muito apaixonado quando assisti pela primeira vez. É muito estiloso, com um jeitão que só o Tarantino consegue fazer. O roteiro é muito bom e a direção de atores é formidável. Acho que o grande ponto é a forma como os diálogos são interpretados”, destaca Caio Morel.
Para Caio Morel, assistir aos filmes de Tarantino no cinema se tornou um programa obrigatório há 25 anos. Tudo começou com “Jackie Brown”, em 1997. “É uma coisa que faço questão, mesmo tendo filhos e morando em Vinhedo, que não tem cinema. Sempre dou um jeito porque é uma experiência muito poderosa e engrandecedora. Ele [Tarantino] faz os filmes com tanto amor que seria ridículo assistir numa TV”, justifica Caio.
O ritual prosseguiu com o primeiro volume da saga “Kill Bill”, em 2003. “Eu fiquei maluco com esse filme porque mistura kung fu com anime e uma porção de outras coisas. Quando acabou a sessão, eu não conseguia sair do cinema, fiquei petrificado olhando para a tela e querendo assistir de novo”, lembra Caio, que repetiu a dose com a continuação de “Kill Bill”, em 2004.
Também foi assim com “Bastardos Inglórios”, em 2009. Com “Django Livre”, em 2013. Com “Os Oito Odiados”, em 2016. E, mais recentemente, com “Era Uma Vez… em Hollywood”, em 2019. Agora, ele aguarda ansiosamente o lançamento do décimo filme de Tarantino, que deve ser o último de sua carreira, conforme o próprio diretor já declarou, para manter a tradição.
46ª Mostra
Retomando o formato 100% presencial após dois anos de realização virtual em decorrência das restrições impostas pela pandemia de Covid-19, a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo teve início no último dia 20 de outubro e segue até a próxima quarta-feira (2), em diversas salas de cinema da capital paulista.
Atualmente sob a direção de Renata de Almeida, ex-esposa de Leon Cakoff, falecido em 2011, o festival deste ano exibirá 231 títulos de 60 países, um apanhado do que o cinema contemporâneo mundial tem produzido, além de apresentar novas tendências, temáticas, narrativas e estéticas.
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