Mesmo com as fake news e a falta de uma política nacional assertiva contra a Covid-19, a vacinação em massa no País foi muito bem-sucedida. O percentual da população adulta vacinada supera os 80% no Brasil. Em Campinas, por exemplo, este índice está próximo de 95%. De acordo com o vacinômetro campineiro, já foram aplicadas 2,4 milhões de doses de vacina na cidade, em todas as faixas previstas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI). São 1 milhão de primeiras doses, 970 mil em segunda ou dose única e 431 mil de doses adicionais, conforme dados disponibilizados até o dia 9 de fevereiro.
Esse mesmo cenário não acontece com as crianças. Pais que se vacinaram estão deixando de levar os seus filhos para tomar a dose do imunizante.
Analistas veem nesse comportamento a influência das informações falsas, que estão levando medo às famílias. Especialistas têm assegurado a eficácia das vacinas e defendido que as crianças devem se vacinar. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu aval ao uso da vacina contra a Covid-19 em crianças de 5 a 11 anos. Mas, mesmo assim, muitos pais estão em dúvida quanto à vacinação de seus filhos.
Três especialistas apresentaram seus argumentos ao Hora Campinas. Eles reiteram que deixar de vacinar as crianças pode ser crime. Matheus Falivene, advogado criminalista pela USP e professor de pós-graduação da PUC-Campinas, Acacio Miranda da Silva Filho, doutorando em Direito Constitucional pelo IDP/DF, e Antonio Carlos de Freitas Júnior, advogado e professor de Direito Constitucional pela USP, ressaltam que há vários fundamentos jurídicos que impõem aos pais uma conduta de proteção. Caso isso não ocorra, uma série de consequências podem estar associadas à negligência e ao abandono.
O §1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) estebelece que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. O artigo 249 do ECA reitera que a falta de vacinação obrigatória – se intencional ou não – significa violação dos deveres pelos pais.
Os dados no Brasil e em São Paulo
Mesmo o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que teve um comportamento dúbio e uma narrativa que não estimulou a vacinação nas crianças, tem nos últimos dias pedido para que os pais levem seus filhos para vacinar. Ele participou no último sábado de um ato de vacinação infantil contra a Covid-19 em Maceió (AL), vacinou duas crianças e voltou a afirmar que, até o dia 15 de fevereiro, o ministério vai distribuir vacinas suficientes para aplicar a primeira dose em todas as crianças de 5 a 11 anos no País.
Na ocasião, o ministro voltou a defender a não obrigatoriedade da vacinação de crianças de 5 a 11 anos, mas fez um apelo para que os pais levem seus filhos para vacinar. Segundo ele, o percentual de crianças de 5 a 11 anos que tomaram a primeira dose de imunizantes contra a doença não passa de 15%.
“Vamos disponibilizar as vacinas para os pais e eu exorto a cada pai e cada mãe que levem seus filhos para a sala de vacinação”, disse.
No Estado de São Paulo, o percentual de vacinados na faixa de 5 aos 11 anos é bem maior, conforme indica o vacinômetro paulista. Conforme dados desta segunda-feira, dia 14 de fevereiro, a taxa das crianças de 5 a 11 anos que tomaram a primeira dose é de 57,5%.
Em Campinas, até o último final de semana, pouco mais de 30% do público-alvo entre 5 e 11 anos havia recebido o imunizante.
Os argumentos jurídicos
Para o advogado Acacio Miranda da Silva Filho, não há dúvidas de que a criança deve, sim, ser vacinada. “Ao tratarmos da obrigatoriedade da vacinação infantil, dois pilares devem ser ressaltados: a saúde pública e a liberdade de escolha dos pais – e, quando ponderados estes bens jurídicos, especialmente durante a crise sanitária atual, é natural pensarmos que a saúde pública, que é inerente a toda a sociedade e à manutenção de seus pilares, deve prevalecer em detrimento aos interesses individuais”, diz, acrescentando que, ademais, “o ECA estabelece o princípio do melhor interesse da criança, razão pela qual, e com base em todos os elementos médico-científicos, a vacina deve ser aplicada”.
Acacio é doutorando em Direito Constitucional pelo IDP/DF. Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada/Espanha e pós-graduado em Processo Penal na Escola Paulista da Magistratura e em Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. É também especialista em Teoria do Delito na Universidade de Salamanca/Espanha.
O advogado Antonio Carlos de Freitas Júnior concorda, e é taxativo ao citar o mesmo §1º do artigo 14 do ECA. “De maneira acertada, o Estatuto é abundante em mecanismos de prevenção à ameaça de lesão a direitos da criança. Da inteligência do próprio dispositivo, não há o que se falar quanto à obrigatoriedade de vacinas que sejam obrigatórias. A mera recomendação de vacinação pela autoridade sanitária, o que já houve em relação à vacina contra Covid, faz-se obrigatória para as crianças por força normativa do ECA.”
Portanto, se os pais deixarem de vacinar o filho e esse contrair a doença, eles podem ser responsabilizados penalmente, além da aplicação da multa prevista pelo Estatuto?
“A omissão dos pais na vacinação, com fundamento no artigo 98 do ECA, por si só deflagra o sistema de proteção do ECA, que pode acarretar: (i) orientação, apoio e acompanhamento temporários; (ii) inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; (iii) requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; (iv) acolhimento institucional; e (v) inclusão em programa de acolhimento familiar – todas proteções que protegem a criança.”
O especialista lembra que as sanções a pais que se negam a vacinar os filhos são variadas.
“Há as seguintes possibilidades: (i) encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família; (ii) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; (iii) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; (iv) perda da guarda; (v) suspensão ou destituição do poder familiar.”
Freitas observa que, além disso, pode ser aplicada multa no valor de três a 20 salários de referência. Mas não é só: “criminalmente, os pais poderão ser responsabilizados nos termos do artigo 132 do Código Penal – ‘expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente’ – e serem punidos com detenção de três meses a um ano.
E se o pior acontecer – em caso de morte da criança por Covid-19 –, os pais podem ser acusados de homicídio culposo?”
“Em caso de morte ou de lesão corporal os pais podem, sim, ter de responder pela modalidade culposa de tais crimes”, diz Antonio Carlos Freitas. Ele acrescenta, porém, que “por serem pais, possivelmente haja ao fim do processo um perdão judicial – com não imposição de pena –, pois a perda de um filho por si só é um castigo e, nos casos de verificação do sofrimento à família, tal instituto é aplicado”. O advogado reitera, no entanto, que “todo o processo judicial é conduzido normalmente e pode haver casos de não aplicação do perdão judicial”.
Antonio Carlos é bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP).
O advogado Matheus Falivene reconhece que a questão é complexa, mas também é taxativo. “Deixar de vacinar pode ser crime de abandono de incapaz, previsto no artigo 133 do Código Penal. A vacinação é obrigatória; os pais não têm o direito de não vacinar os seus filhos – não só por uma questão de risco à criança, mas também por risco à sociedade. ”
Falivene lembra, porém, que a polêmica que cerca a vacinação de crianças e o movimento antivacina são anteriores à atual pandemia – e que, portanto, já existe o Projeto de Lei 3842, de 2019, que cria o crime “Oposição ou contraposição à vacinação de crianças e adolescentes”. “Se aprovado, esse PL definirá um crime que é muito mais específico e direcionado em relação à vacinação de crianças e adolescentes – e que acaba com qualquer discussão a respeito do tema. ”
Matheus Falivene é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, professor na pós-graduação da PUC-Campinas e advogado nas áreas de Direito Penal e Direito Penal Econômico. Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/Portugal.