Desde que os resultados das eleições de 2014, no Brasil, deram vitória à então presidenta Dilma Rousseff, e o inconformismo do ex-senador derrotado, Aécio Neves, ganhou holofotes da imprensa, questionando a legitimidade do processo democrático brasileiro, uma onda de ataques às Democracias têm corroído as Instituições em diferentes lugares do mundo.
Anos antes, em 2012, o presidente democraticamente eleito no Paraguai, Fernando Lugo, sofreu um golpe de Estado sem canhões ou tanques de guerra, mas por uma articulação maquiavélica do Congresso Nacional. Desrespeitando a vontade popular, o Legislativo impôs a troca de governo que forçou uma guinada do Paraguai à direita, afastando-o dos projetos de integração e fortalecimento da América do Sul em direção à submissão político-econômica aos EUA, para agradar o “mercado”.
Em 2015, o mesmo aconteceu no Brasil, com o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, e a imposição de uma agenda de retrocessos sociais e destruição de direitos através das reformas trabalhista e previdenciária.
Hoje investigado em inquéritos que vão desde tráfico de influência na Polícia Federal, incitação a atentados antidemocráticos, fraude de documentos e venda ilegal de patrimônio da União, o ex-presidente Jair Bolsonaro, eleito presidente em 2018 e sete vezes deputado federal desde 1991, passou a fomentar desconfiança nas urnas eletrônicas, alegando que somente sua eventual reeleição confirmaria a legitimidade do processo eleitoral.
Antes da derrota de Bolsonaro, Donald Trump perdeu as eleições para Joe Biden, nos EUA, em 2020. Com as mesmas acusações, colocou o sistema eleitoral estadunidense sob suspeita de fraudes, pedindo recontagem de votos e incitando a violência que levou à invasão do Capitólio, em Washington D.C. em 06 de janeiro de 2021. Recentemente, Trump foi alvo de tentativa de assassinato enquanto discursava em um comício. No Brasil, diante da vitória democrática de Lula em 2022, atentados antidemocráticos causaram grande destruição às sedes do Legislativo, Executivo e Judiciário na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 08 de janeiro de 2023. Meses antes, pessoas acampavam em frente a quartéis pelo país ameaçando um golpe militar caso Jair Messias não fosse reeleito.
No mesmo ano, Xi Jinping foi reconduzido à presidência da China, onde um único partido disputa eleições desde a Revolução Comunista de 1949, quando, sob liderança de Mao Zedong, teve início o intenso e violento processo de industrialização que faz do país, hoje, a maior economia do planeta.
Na Europa, partidos de extrema-direita, com grande simpatia por teses fascistas e neonazistas, passam a ocupar cada vez mais assentos nos parlamentos nacionais e no Europeu, democraticamente eleitos pela população de países como França, Alemanha, Hungria, Itália e Polônia.
Discursando com uma motosserra à mão e performando pateticamente como astro do rock, Javier Milei foi eleito democraticamente presidente da Argentina, prometendo reformas ultraliberais que, até agora, só têm aprofundado a pobreza no país que já foi uma das maiores economias do mundo. Isolando-se dos vizinhos sul-americanos, a Argentina aprofunda sua dependência diante dos EUA e órgãos credores da dívida pública, como FMI, além de grandes corporações que se beneficiam do festival de sucateamento e privatização de empresas, recursos e serviços estratégicos até então sob controle do Estado argentino.
Em março de 2024, Vladimir Putin foi reeleito presidente da Rússia com quase 90% dos votos válidos. Em fevereiro, Alexey Navalny, seu principal opositor, foi encontrado morto no presídio onde cumpria pena desde 2021. Putin segue implacável na invasão e destruição da Ucrânia desde 2022, alegando que está combatendo grupos neonazistas que, desde 2014, promovem uma luta armada e antidemocrática, segundo Moscou, no país que foi vítima tanto da tirania de Stalin, diante da grande fome de 1932, quanto das atrocidades da invasão e ocupação nazista em 1941.
No último domingo, 28 de julho, Nicolás Maduro foi reeleito na Venezuela, com 51,2% dos votos válidos, sob fortes protestos da oposição, que o acusa de fraudes eleitorais. Sua principal opositora, Maria Corina Machado, foi impedida de disputar as eleições.
Eleito presidente pela primeira vez em 2013, Maduro disse que haveria um “banho de sangue” no país caso não fosse reeleito. Em 2019, Juan Guaidó ensaiou um golpe frustrado contra ele, autoproclamando-se presidente da Venezuela, somando a tentativa fracassada ao atentado contra Hugo Chávez em 2002.
A Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do planeta, o que atrai enorme interesse de grandes empresas, principalmente estadunidenses, no direito de exploração do combustível. Diante da insubmissão venezuelana de autorizar a exploração estrangeira, os EUA têm promovido boicotes e embargos ao país há mais de 10 anos, agravando a situação econômica do país onde milhões de pessoas vivem em situação de vulnerabilidade, sem acesso a alimentos e condições básicas de sobrevivência. Desde que Maduro assumiu o poder, o PIB da Venezuela encolheu 62,5%, enquanto a população vivendo em extrema pobreza subiu de 11,4% para 68%. Milhares de opositores políticos foram presos, centenas foram mortos e o número de pessoas que deixaram o país para fugir da pobreza e da perseguição política passa de 5 milhões.
No século passado, os sucessivos golpes militares na América Latina, na África e no Oriente Médio durante a guerra fria, na maioria das vezes sob a insustentável justificativa de combate ao comunismo, destruíram democracias que começavam a se fortalecer pelo exercício do poder popular, condenando antigas colônias à exploração socioeconômica neoliberal conforme o capitalismo consolidava-se como sistema político-econômico global.
Candidatos ditos defensores da democracia e da liberdade, com forte apoio de megaempresários, banqueiros e elites financeiras herdeiras do colonialismo, prometiam superar os terríveis traumas deixados pelo nazismo e pelo fascismo combatendo a “velha política”. Mais recentemente, a encenação da Primavera Árabe no norte da África e no Oriente Médio serviu, com raras exceções, apenas para trocas governos autoritários resistentes aos EUA por ditaduras alinhadas aos interesses econômicos estadunidenses. Todavia, problemas estruturais como a desigualdade social, a exploração econômica, a violência étnico-racial e de gênero, além do genocídio de povos e populações marginalizadas segue ocorrendo com enorme voracidade – seja em Gaza, na Venezuela, na Ucrânia, no Brasil ou mesmo nos EUA.
Simulando isenção e imparcialidade, a grande imprensa incita o ódio e a divisão popular no processo eleitoral, criando polarizações e reduzindo os espaços de debates públicos a concursos toscos de popularidade, repletos de demagogias, insultos e sensacionalismo barato. Antes mesmo das disputas eleitorais, cenários fictícios alarmam a população sobre consequências catastróficas diante da eventual vitória desse ou daquele candidato. Especulações provocam oscilações nas bolsas de valores e nos fluxos de dólares, enquanto o eleitorado se fragmenta ao defender interesses individuais ao invés de lutar por uma agenda de direitos coletivos.
No século XXI, quando o acesso à informação e a conectividade deveriam fortalecer as democracias populares, as distopias imaginadas por Aristóteles e Platão, críticos pessimistas do exercício do poder pelo povo, parecem ganhar forma na constatação de que minorias tirânicas continuam a controlar as relações políticas, econômicas, sociais, militares e culturais no mundo todo.
Movimentos supremacistas, fanático-religiosos, ultraconservadores e antidemocráticos ganham força, enquanto se naturaliza o que Rubens Casara chamou de “Estado pós-Democrático”.
A luta democrática, que no passado foi essencial para que o capitalismo liberal pudesse romper com as monarquias teocráticas e absolutistas do feudalismo, hoje já não é mais necessária, uma vez que, no neoliberalismo, a tirania é normalizada pelo discurso da meritocracia, do individualismo e do falso moralismo.
Na era informacional, ainda que populações inteiras pereçam com a miséria, a fome e as guerras, os lucros seguem crescendo vertiginosamente conforme continuam circulando as informações, mesmo que sejam falsas, sensacionalistas, especulativas ou fomentadoras do ódio e da violência.
Ao naufragar em discussões sobre a legitimidade de eleições e a polarização entre grupos e partidos que acabam por governar da mesma forma, a classe trabalhadora aliena-se de sua própria condição, abdicando do direito de exigir que os governos sirvam ao povo, oferecendo soluções eficazes, democráticas e consensuais para resolver problemas que castigam a humanidade há séculos.
E se, ao invés de se fragmentarem politicamente, houvesse cooperação multilateral entre Brasil, Venezuela e Argentina, fortalecendo relações comerciais na produção e acesso a petróleo, alimentos e produtos industrializados, por exemplo? Haveria geração de empregos, aumento do poder de compra da população, diminuição do preço da comida e da energia, diante do aumento da oferta, e redução da dependência econômica sul-americana de países como China e EUA. Por que a grande imprensa não fomenta debates e reflexões nesse sentido? Por que megaempresários e gurus do mercado não somam esforços e pressionam governos a investir em educação, saúde, habitação e acordos de integração regional ao invés de gastar com armas, guerras, instabilidade e especulação?
O capitalismo depende, essencialmente, de crises que produzem instabilidades e conflitos que legitimam a violência do Estado contra a população e, assim, autorizam a iniciativa privada a mover-se livremente, sem restrições ou limites, sobre territórios – inclusive os subjetivos, mercantilizando e negociando tempo, vidas e pessoas, tal qual na escravidão de séculos atrás. Reduzidos a produtos a serem negociados, os cidadãos e cidadãs tornam-se expectadores de uma farsa democrática, quando deveriam ser protagonistas de sua real expressão.
Enquanto não houver clareza e consciência para que o povo, em sua ampla diversidade e maioria, reivindique e exerça seu papel na construção de democracias populares, questionando os privilégios de 1% diante da exploração dos 99%, os sistemas democráticos seguirão superficiais, sequestrados, artificiais.
Sustentar conflitos e a guerra de todos contra todos entre os explorados garante os privilégios e a concentração do poder entre os que exploram. Não por acaso, populistas autoritários e tiranos neoliberais, retoricamente opostos, encontram enorme sintonia ao defender a repressão da educação emancipatória, de movimentos sociais e conselhos populares que horizontalizam espaços de decisão e lideranças que desafiam a hegemonia do poder autoritário, venha ele da cruz, da espada, da coroa, de mísseis teleguiados, das bitcoins ou do tiktok.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo, mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pós-graduado em Neuropsicologia.