Um ano e alguns dias em quase total isolamento doméstico. Tenho feito o mesmo de sempre: molhando as plantas do apartamento, lavando a gaiola do passarinho, limpando a casa quando a faxineira não aparece por questões íntimas, passando as minhas camisetas – coisa que aliás não venho fazendo mais – picando legumes para a sopa, lavando verduras e frutas (adoro salada de frutas) e arrumando a cama e lavando a louça do almoço e jantar.
Por favor, raro leitor, fique em casa. Use máscara e lave bem as mãos a receber a mercadoria da quitanda. Escreva uma carta para algum parente distante que você não vê, não conversa e nem sabe mais nada de sua vida. Escreva uma carta com sinceridade. Diga apenas que dele se lembrou por conta do isolamento da pandemia, da solidão que está sentindo da parentada, da tia velha que fazia balas de alfenim, da velha mangueira do sítio, do balango em seus galhos, do avô que fervia cocada, das suas conversas de alpendre, ao começo da noite, que os mais velhos se entediavam e, aos poucos, se retiravam do recinto. E só ficavam os netos escutando velhas histórias, que, um dia, iriam repetir aos seu filhos e netos.
Não há nada além de prosas avarandadas. E as palavras de nossos velhos pais e avós ainda lustram o ladrilho de nossos alpendres. Nossas velhas casas tinham alpendres ladrilhados e neles deitávamos nossas costas suadas, encaloradas, e observando os urubus voando alto, as andorinhas rasando atrás de siriris, e o vento batendo no capim gordura e nas costas do alecrim. E tudo era cheiro de vida, um quase sabonete que ainda a gente não sabia existir.
Em cada fim de tarde era hora de tomar banho. De banheira. Os filhos menores tomavam antes, cinco meninos – e mais um agregado, o Caticoco, um pretinho amigo da gente, vizinho da casa de trás, que era então irmão que a gente com ele trocava carinhos e abraços. Hoje tenho filho casado com uma negra, a Juliana, e que me deu duas netas, a Eduarda e a Ana Carolina. E delas tenho saudade todos os dias e noites – preocupado com a pandemia.
Venho perdendo cabelos, amigos, sonhos, rimas e canções. E perdendo a fé em gente que confiei; e apenas ganhando o que tenho para o que posso ter – e é só. E quanta covardia sibilina há nas pessoas silenciosas e cordatas, sempre à espreita de um bote jararaca.
Faço sempre muito barulho. Sempre fui arauto da minha consciência e sempre levantei antes da traição de um erro. E digo aos neurônios para se manterem atentos aos novos tempos cibernéticos – nada é confiável na Internet. Quanta bobagem é pensar em ser o senhor de seu próprio destino; e quanta bobagem venho fazendo há tanto tempo, confiando na língua da politicalha.
Melhor faria se tivesse sossegado no meu canto e apenas catando meus cacos de palavras canções. Tenho um saudoso amigo, grande professor e advogado, amante das canções de Nelson Gonçalves, figura de proa da Educação, que costumava dizer que se arrependia de não ter sido boêmio, cantor de bar, contador de piadas e outras estórias. Um pouco antes da sua partida eu lhe disse que ele tinha sido tudo isso, boêmio e um poeta da noite. E dele recebi um abraço fraternal que até hoje sinto nos meus ombros.
Não sei quando a minha alma se desgarrou e foi por aí escrever e cantar nos mais sórdidos botequins. E assim fico aos finais da tarde para ver se uma poeira qualquer de casco anuncia a chegada da minha crença nos homens. E todas as tardes terminam, os sóis, todos, se escondem, tantas luas, tantas estrelas, e adormeço com a saudade da alma que vaga por aí atrás de um saudoso amigo que bem gostaria de ser boêmio, cantador e contador de estórias.
Só quero amigos de abraços e varanda, o suficiente para proteger o navio que ainda tenho em mim; pois ainda há um bom pedaço de mar para navegar, muito mar. E uma massa de macarrão para esticar. Afinal, é claro, hoje é domingo.
Bom dia.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico