Levantei da cama e fui tratar do chá da companheira e do meu café. E como gosto de frio não me incomodei com o sopro gelado que vinha pela fresta das portas da varanda. Vento e fresta existem para isso. Assim como o chá e o café.
Costumo ligar a tevê para saber das primeiras notícias do dia e fiquei sabendo que o fundo eleitoral atingiu os píncaros da imoralidade: cinco bilhões e setecentos mil reais. Exceto cinco ou seis parlamentares, os demais aprovaram a grana – dentre eles os filhos do presidente Jair Messias Bolsonaro. E agora o presidente diz que vai vetar o projeto do fundo eleitoral, jogando para a sua plateia de seguidores. Tanto faz como tanto fez: ele veta e o Congresso derruba seu veto e a vida segue como sempre. Prepara-se, meu raro leitor, para pagar mais essa conta.
Já estamos chegando a 550 mil mortos pandêmicos e as vacinas não chegam para proteger os mais de 150 milhões de brasileiros.
Mas as notícias de corrupção na compra de vacinas brotam a olhos vistos pelos tapetes do Palácio da Alvorada. E o Congresso entrou em recesso e o escândalo do aumento do fundo eleitoral será apenas mais uma notícia de rádio, tevê e jornal.
A tarde fria me avisa de aquecer as pedras das calçadas e saio pela Orosimbo Maia. Carros, ônibus, motos, e ninguém andando pela calçada. E assim vou andando atrás de velhos tempos, do sair de casa para cortar caminho até o centro da cidade. Só anos depois aprendi que o melhor caminho é andar se esquinando pelas ruas – pois a retidão é o melhor caminho para se encontrar o Diabo ( e isso aprendi com um escritor do qual não me lembro o nome). E saio da Orosimbo Maia e entro na Anchieta e, em seguida, subo a Lopes Trovão, entro na Libânia, Dr. Quirino, dobro a 14 de Dezembro e desço a Sacramento e volto para a Sete de Setembro – se possível, roubo uma flor e volto para casa.
O Diabo não conhece meus caminhos e Deus não tem nada a ver com isso – aliás, ninguém tem nada a ver com a minha vida de peregrino, caçador de flores urbanas.
E assim me deixo levar pelo aroma da sopa de legumes, torradas e cumprindo mais um dia pandêmico. E assim escrevo e fico lembrando dos amigos cantores, atores, pintores, e guardando em mim os abraços a todos eles. E a noite invade a varanda do apartamento e a madrugada, bem sei, descansará seus orvalhos nos ombros dos desvalidos que moram nas ruas e marquises da cidade.
A sirene de uma ambulância geme na Orosimbo Maia, alta madrugada. Alguém está com problemas e alguém deve estar preocupado com a demora de seu filho, de um parente. E assim os meus nervos, carnes e ossos desejam esperanças a quem quer que seja. E assim aguardo o sono que, de preferência, venha sem sonhos. Não, meu raro leitor, gosto de sonhar. Mas, de preferência, acordado. Por exemplo, vagabundeando por aí, imaginando que os políticos ainda serão escolhidos pelo voto distrital.
Mas aí vem a notícia da escandalosa aprovação cameral do fundo eleitoral e tudo vai morro abaixo. É tudo ao mesmo tempo, o sonho e o pesadelo. E busco um passo mais rápido para escapar da vida septuagenária que carrego no lombo.
Ontem, tive uma boa notícia. Tem um rapaz andarilho, alto, magro, de passos largos e rápidos, que sempre encontro pela avenida. Ontem eu o vi descansando na galhada de uma paineira, quase a três metros de altura. E assim fiquei feliz em saber que ainda existem pessoas que necessitam apenas do galho de uma paineira para lhes servirem de casa. E assim digo e escrevo como a mais simples verdade. E ele não precisa do meu testemunho. E tampouco das minhas orações. É isso. E hoje o meu travesseiro vai adormecer também.
Zeza Amaral é jornalista, escritor e músico