O sistema público de saúde está em dívida com a população de cidades médias e pequenas da Região Metropolitana de Campinas (RMC). Isso não decorre apenas dos gargalos sabidamente conhecidos, como cirurgias represadas e atendimento nem sempre adequado em UPAs e hospitais. Trata-se, especificamente, de um problema que está afligindo famílias inteiras, em especial pais e mães de crianças e adolescentes: a incapacidade do governo estadual e, por consequência, dos municípios de oferecer o soro antiescorpiônico em tempo adequado a vítimas de ataques peçonhentos.
É inconcebível que a Secretaria Estadual de Saúde insista em um protocolo de gestão que tem se mostrado insuficiente para garantir mínimo suporte aos pacientes, num momento de socorro aflitivo e desesperador.
O tema não é novo. Até por conta disso, denota falta de sensibilidade dos gestores estaduais.
Vamos aos fatos. Em menos de dez meses, a cidade de Jaguariúna registrou dois ataques de escorpiões em crianças, ambas de três anos. No ano passado, em novembro, o pequeno Arthur Morais Carvalho Nascimento morreu após ser picado por um escorpião dentro de sua casa, no Jardim Europa.
A família buscou suporte em unidades do municipío, mas, em razão do protocolo de atendimento regional, teve de esperar a transferência de Arthur para o Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Jaguariúna, apesar de sua posição estratégica e ser epicentro de atendimento em saúde para cidades como Santo Antonio de Posse, Holambra, Pedreira e Artur Nogueira, não dispõe de soro antiescorpiônico.
Arthur foi levado para o HC da Unicamp, onde recebeu o tratamento. A criança ficou na UTI Pediátrica, mas o quadro clínico se agravou, indo a óbito na manhã do dia seguinte ao acidente. Hoje, a família processa o Estado por negligência.
Nesta semana, uma menina de 3 anos também foi picada por um escorpião dentro de casa, em Jaguariúna, e precisou ser transferida para o HC da Unicamp. Ela chegou em estado grave, mas recebeu tratamento e seu caso evoluiu bem, felizmente. Ela já está no quarto, sorrindo e brincando.
A questão que se coloca é a insistência da Secretaria Estadual de Saúde num protocolo que tem se mostrado insuficiente e de alto risco.
Não se quer aqui desdenhar da experiência e da boa-fé de autoridades ligadas à Vigilância e à Saúde. O que se cobra é a revisão imediata das regras que hoje sustentam essas orientações.
O Plano Regional sobre Acidentes com Escorpião define critérios e fluxos de atendimento no estado paulista. As chamadas unidades de baixa e média complexidade, o que inclui Jaguariúna, fazem o primeiro atendimento. Em caso de maior gravidade, é acionada outra referência regional para o suporte.
Atualmente, existem 228 Pontos Estratégicos de Soro Antiveneno (PESAs) para atendimento aos acidentados por animais peçonhentos em todo o estado de São Paulo. As unidades foram distribuídas, segundo a Pasta da Saúde, “estrategicamente com o objetivo de reduzir o tempo entre a picada e o atendimento/tratamento do acidentado, pensando principalmente no socorro às crianças de até 10 anos.”
Há, inclusive, um mapa interativo (clique no link), desenvolvido pelo Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE), que fornece as informações necessárias para buscar ajuda em emergências, sobretudo, no período quente e chuvoso, época em que este tipo de acidente mais acontece.
Na região de Campinas são seis hospitais, localizados em cinco cidades, onde os pacientes podem recorrer em caso de algum acidente com animais peçonhentos: Sumaré, Indaiatuba, Americana, Santa Bárbara d’Oeste e Campinas.
CONFIRA
Locais na região de Campinas:
♦ Campinas – Hospital das Clínicas da Unicamp (soros Botrópico, Crotálico, Elapídico, Escorpiônico, Aracnídico e Lonômico)
♦ Campinas – Complexo Hospitalar do Ouro Verde (Escorpiônico)
♦ Indaiatuba – Hospital Augusto de Oliveira Camargo (Escorpiônico e Aracnídico)
♦ Santa Bárbara D’Oeste – Pronto Socorro Édson Mano (fornece soros Escorpiônico e Aracnídico)
♦ Americana – Hospital Municipal Waldemar Tebaldi (Escorpiônico e Aracnídico)
♦ Sumaré – Hospital Estadual Dr. Leandro Franceschini (Escorpiônico e Aracnídico)
Protocolo não pode ser definitivo
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo contabilizou até o mês passado aproximadamente 22 mil ocorrências envolvendo escorpiões, com um óbito. A grande adaptação do bicho ao ambiente urbano é um dos grandes desafios das autoridades e das famílias. Sabe-se que o escorpião aprecia ambientes quentes e úmidos. Ele pode se esconder em terrenos com entulhos e espaços ajardinados. Por conta de sua grande resistência e adaptação, os processos de dedetização já não são mais 100% eficazes.
Além disso, o escorpião esgueira-se sorrateiramente por encanamentos e redes de esgoto, o que permite a sua chegada aos ambientes domésticos.
A praga é hoje um problema grave de saúde pública, afligindo as famílias, independentemente de sua classe social. Ele também não habita apenas residências térreas, podendo alcançar e escalar edifícios por meio das redes de esgoto e eventuais frestas em habitações coletivas.
É neste contexto de urgência que o tema se impõe. A estação quente é a mais perigosa para os ataques. Estamos ainda no Inverno, em transição para a Primavera, o que coloca o assunto na ordem do dia.
Pacientes que enfrentaram epidemias recentes de dengue e a pandemia da Covid-19 puderam perceber que os serviços de saúde pública foram obrigados a rever condutas e protocolos, diante da alta demanda e da gravidade dos casos.
Hoje, por exemplo, não se concebe mais um médico plantonista deixar de pedir um exame de controle de plaquetas para períodos epidêmicos de dengue. Passou a ser protocolo. Quando a dengue não era uma doença tão desafiadora e presente nos lares brasileiros, muitas vezes resolvia-se um atendimento de dor e febre com um diagnóstico de virose. Hoje não é mais assim.
O que o Estado está esperando?
O contexto de tensão que envolve um socorro de criança vítima de ataque de escorpião (e também os adultos) é evidente. Mães e pais são capazes de invadir salas de médicos em UPAs e hospitais ou perder a compostura para salvar os seus filhos. Quando autoridades tergiversam sobre esse assunto ignoram esse drama que tem sido objeto de discussão cada vez mais comum.
O segundo ataque em menos de um ano mexeu com Jaguariúna. Famílias com crianças pequenas têm enfrentado noites de pânico e situações de fobia para inspecionar as suas casas.
O Hora Campinas apurou que, diante do caso do ano passado, o prefeito Davi Neto colocou o tema em sua mesa para rever esse protocolo. A ideia era mostrar à Secretaria Estadual de Saúde que Jaguariúna comportava ser uma referência logística para ter e aplicar o soro antiescorpiônico.
Davi, inclusive, afirmou à época que treinaria equipes para que fossem capacitadas a aplicar o tratamento na UPA ou no Hospital Municipal Walter Ferrari. A falta de capacitação de equipes seria um entrave adicional para a disponibilização do soro para cidades menores.
Nada, porém, que possa ser solucionado com treinamento prévio e pessoal de plantão, nem que seja a distância, para ser acionado em caso de emergência.
Não se admite, portanto, desconhecimento da realidade por parte das autoridades de saúde. Não se espera, também, pouco caso ou a velha burocracia que muitas vezes grassa em esferas públicas, dissonante da sociedade e dos apelos da comunidade que paga seus impostos e exige respeito e suporte mínimos.
Com a palavra o governador Tarcísio de Freitas (Repub) e o secretário estadual de Saúde, Eleuses Paiva. Demais autoridades têm espaço aberto no Hora Campinas para se manifestar.
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