A proximidade do Natal, para além de shoppings centers lotados e o endividamento compulsivo da população, a despeito da crise sanitária e econômica que vivemos, nos faz olhar, também, para outra situação que, apesar de naturalizada por séculos de desumanização do povo pobre, tem saltado aos olhos como nunca – nas calçadas, nas praças, nos semáforos e nas redes sociais.
Embora a existência da arquitetura hostil e da aporofobia (aversão a pessoas pobres) não seja novidade nos centros urbanos do Brasil, onde ecoam as heranças de um passado escravocrata e de um sistema econômico que dá manutenção às desigualdades sociais, foi pelo engajamento do padre e pedagogo Júlio Lancellotti que o assunto ganhou manchetes nos últimos dias.
Aos 72 anos de idade, Lancellotti é emblema de uma vida toda de trabalho devotado a significar e viver o cristianismo pela compaixão, pelo acolhimento, pela solidariedade e pelo afeto aos mais necessitados – tal como teria ensinado o próprio Cristo, cujo nascimento em uma manjedoura, de forma precária, fora produto da exclusão social e da rejeição que, há milhares de anos, já era flagelo de pessoas pobres.
A vitrine digital das redes sociais, expondo exemplos da hostilidade em locais de passagem, faz os olhos desviarem das telas brilhantes e perceber, ainda que pela janela do carro ou do ônibus, a crueldade dos recursos arquitetônicos produzidos para evitar que pessoas em situação de rua encontrem abrigo: bancos com divisórias, para que não se deitem; pedras pontiagudas, espinhos de ferro e grades impedindo que áreas debaixo de fachadas e marquises, inclusive de igrejas, viadutos e pontilhões virem lugar de descanso e proteção contra sol e chuva a quem mal consegue sobreviver.
As justificativas sobre “proteção” do patrimônio público e da propriedade privada só reforçam o mantra maligno que já conhecemos: a vida de pessoas vulneráveis parece valer menos do que calçadas, vidraças, escadas e paredes, essas sim protegidas por leis e políticas públicas higienistas usadas para alimentar o ódio contra grupos marginalizados em tantas ocasiões. Sejam judeus ou armênios, latinos ou muçulmanos, pessoas desabrigadas nas cracolândias ou os leprosos de Jerusalém, párias excomungados e condenados a desaparecer para não desvalorizar o bairro, sujar a praça ou atrapalhar o trânsito.
Se a história se repetisse no 24 de dezembro deste ano, deveriam, José e Maria, aguardar na fila do SUS por um leito de maternidade na sobrecarregada rede pública?
Ou teriam sido negligentes e irresponsáveis por não terem poupado o bastante para pagar um convênio particular e um pré-natal com direito a cesariana em um dia menos movimentado do que o da aparição da Estrela de Belém? Não daria pra dividir uma acomodação coletiva com os três reis magos e seguir viagem, depois, para um lugar mais afastado e precário, onde “trabalho sempre tem de sobra”?
Há dois mil anos, além de reivindicar ocupar espaços de poder e decisão numa sociedade controlada pelos exércitos da coroa romana, Jesus fez pior: ousou considerar a vida de pessoas pobres e marginalizadas tão importante quanto à dos que defendiam seu extermínio. Mas onde teria refúgio, hoje, o tão esperado (e improvável) “salvador da humanidade”, se nascesse nas ruas?
A arquitetura hostil colocou as cruzes em altares, mas os espinhos continuam castigando.
Pontas, muros, cercas, cancelas, catracas e armas para fazer-se respeitá-las não parecem condizer muito com o paraíso eterno pelo qual muitos esperam (ou tentam comprar), mas certamente materializam o inferno que tanta gente vive cotidianamente, bem ao nosso lado, inclusive no Natal.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e artes.
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