Impossível não falar de novo no assunto. As queimadas não dão trégua por todo o Brasil, chegando nesta semana às barbas do governo federal, pelos focos de incêndio na capital, próximo à Granja do Torto, uma das residências do presidente da República.
A proliferação de queimadas pelo território nacional, como fruto de ações criminosas associadas à seca histórica, por sua vez alimentada pelas mudanças climáticas cada vez mais intensas e assustadoras, tem de qualquer modo o resultado de colocar os gestores públicos, todos, em esfera nacional, estadual e municipal, em uma espécie de tribunal público.
Porque a hora da verdade do clima chegou, se é que ainda havia dúvidas do potencial de destruição dos eventos climáticos extremos. E essa hora da verdade coloca diante da opinião pública o que é fato e o que é mentira, o que é ação concreta e o que é mera intenção que não leva a nada.
Ontem o Observatório do Clima divulgou levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), mostrando que entre junho e agosto os incêndios no bioma emitiram 31,5 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente. Este volume de CO2 lançado na atmosfera equivale ao que a Noruega emite em um ano e é 60% maior do que o mesmo período de 2023.
A comparação com as emissões do país escandinavo é especialmente relevante, considerando que a Noruega é um dos principais doadores do Fundo Amazônia, criado justamente para o financiamento de ações contra o desmatamento e pelo desenvolvimento sustentável na região. Desde a criação do Fundo e o primeiro acordo firmado com a Noruega, em 2013, este país já doou o equivalente a R$ 3 bilhões para ações de proteção da Amazônia.
Por ocasião da divulgação dos dados ontem, pesquisadoras do IPAM alertaram que as emissões decorrentes das queimadas podem neutralizar os efeitos da importante redução do desmatamento na Amazônia no governo atual. A última estimativa de redução do desmatamento é de 46% em relação a 2023.
Além disso, as pesquisadoras advertiram que as emissões de CO2 equivalente não cessam quando terminarem as queimadas. “Um importante impacto dos incêndios florestais nas emissões não ocorre no momento em que a floresta está queimando, mas depois, quando principalmente as grandes árvores morrem e continuam a emitir CO2 por muitos anos, o que é chamado de emissão tardia. O pior é que uma floresta degradada pelo fogo se torna mais suscetível a outros incêndios, perpetuando um ciclo de degradação e emissões”, explica Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam.
Em resumo, as consequências da atual temporada de incêndios pelo país continuarão por muito tempo no meio ambiente. Assim como prosseguirão as críticas ao governo federal, se tiver continuidade a dubiedade de posições que ele tem demonstrado.
Enquanto o presidente Lula anuncia a criação de uma Autoridade Climática, ainda sem estrutura definida, para acelerar as políticas brasileiras de combate ao aquecimento global, o governo toma medidas contraditórias.
Uma delas, por exemplo, foi o apelo do Brasil para que a União Europeia adie a entrada em vigor, prevista para o final de 2024, da nova lei antidesmatamento aprovada pela Comissão Europeia. O argumento do governo federal é o de que a implementação da lei agora afetaria as relações comerciais com a Europa, destino de 30% das exportações brasileiras.
A lei antidesmatamento tem o propósito de evitar que as commodities comercializadas no bloco europeu sejam resultantes de expansão agrícola e da pecuária à custa da derrubada de vegetação nos locais de origem. A nova legislação também estipula que a produção de commodities comercializadas na Europa, como gado, cacau, café, óleo de palma, soja e madeira, deve respeitar leis internacionais como o Princípio de Consentimento Livre, Prévio e Informado estabelecido na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Como se sabe, a mudança no uso das terras, para expansão de novas fronteiras agrícolas, tem sido uma das causas principais do desmatamento no Brasil, principal fonte nacional de emissão de gases de efeito-estufa. Ainda não há uma posição clara da União Europeia sobre o pedido brasileiro, mas a tendência é a de que a nova legislação entre de fato em vigor no final do ano.
Diante da escalada de queimadas, que podem então anular os efeitos positivos da redução do desmatamento na Amazônia, o governo brasileiro precisará assim tomar decisões mais firmes e unívocas, não reincidindo nas contradições que têm sido verificadas até o momento.
Ainda mais que o Brasil (especificamente Belém) sediará a COP-30 do Clima em 2025 e o Palácio do Planalto quer “vender” o evento como um marco histórico no enfrentamento às mudanças climáticas. Mas será difícil manter essa postura se o contraditório continuar vigorando.
Governos estaduais e municipais também precisam deixar de lado as próprias contradições. O governo do Rio Grande do Sul, por exemplo, tem sido muito criticado por organizações ambientalistas por ações que vão na direção contrária do que as enchentes históricas no início do ano apontaram, a urgência de medidas concretas contra as mudanças do clima e de proteção ao meio ambiente em geral naquele estado.
No caso dos municípios, a imensa maioria deles ainda não tem políticas próprias de enfrentamento das mudanças climáticas. E esse tema tende a continuar não sendo prioridade, como mostra a atual campanha para as Prefeituras na grande parte do país.
Infelizmente o que se tem visto é, em um clima político que já estava polarizado, o acirramento de trocas de acusações e até de agressões entre candidatos, como se viu recentemente na maior cidade do país. Muito pouco se vê, por outro lado, de propostas concretas sobre o que os Executivos municipais, em conjunto com as respectivas comunidades, podem fazer para evitar ou mitigar os efeitos das mudanças do clima que, como se tem visto, podem ser destruidores em dimensão incalculável.
Essa coluna renova então o desejo, manifestado na semana passada, de que a atual campanha eleitoral tome outros rumos. Que o espaço nobre que as candidaturas (a prefeitos e vereadores) garantem no período eleitoral seja utilizado de modo pedagógico, de alto nível, em defesa dos recursos naturais e de um desenvolvimento de fato sustentável. Porque do contrário todos, de direita ou esquerda, de lá ou de cá, pagarão e muito caro e não vai demorar muito.
José Pedro Martins é jornalista, escritor e consultor de comunicação. Com premiações nacionais e internacionais, é um dos profissionais especializados em meio ambiente mais prestigiados do País. E-mail: [email protected]