A expressão vem do termo inglês “entreprecariat”, neologismo que nasce da junção das palavras “entrepreneur” (empresário ou empreendedor) e “precariat” (precariado, em alusão a um proletariado moderno formado por trabalhadores e trabalhadoras em situação precária). O termo pode parecer estranho, mas ilustra muito bem a realidade de milhões de pessoas no Brasil e no mundo: a de quem, sob a falsa promessa de liberdade e sucesso, se sente exausta e infeliz ao mal conseguir manter as contas em dia para sobreviver.
O artista e designer italiano Silvio Lorusso trouxe a palavra como tema central do livro publicado em 2019, que será lançado no Brasil em breve, com o título “Emprecariado – todo mundo é empreendedor. Ninguém está a salvo”, expondo críticas e reflexões importantes sobre as relações de trabalho condicionadas pelo capitalismo na era informacional.
No vácuo das crises agravadas pela pandemia nos últimos anos e pelo desmonte trazido por governos e políticas antidemocráticas em vários países, a face perversa da exploração socioeconômica se camufla nas pseudoliberdades do home-office, flexibilização de garantias trabalhistas e lições de moral fajutas sobre meritocracia para naturalizar a pobreza, a fome, as guerras por poder e o aumento das já abissais desigualdades sociais entre ricos e pobres.
Incutida desde muito cedo nas pessoas, a ideia de prosperar materialmente, a qualquer custo, perverte as relações afetivas de cooperação e empatia, reduzindo-as a armas de manipulação num jogo permanente de competição e acumulação.
Cidadãos e cidadãs são pressionados a virar “pessoas jurídicas” e a subjetividade de cada ser humano é sacrificada para dar à luz mais uma microempresa, sempre a serviço de um tal Mercado. SEMPRE. Sempre, mesmo! Isso porque a propaganda de substituir o trabalho formal, presencial, com carga horária e salário pré-determinados, pela “autonomia” do empreendedorismo acaba por levar, com frequência, à condição característica do emprecariado. Celular com internet à mão tem se tornado sinônimo de trabalho incessante. E, pior, muitas vezes com grandes despesas e sem remuneração.
Da pessoa que trabalha com comércio virtual à que vende consultoria on-line; condutores e entregadores que recebem ordens e pagamentos de uma tela luminosa; um sem número de analistas de dados e day traders e, ainda, quem tenta ganhar dinheiro com publicidade paga, ou aplicando golpes através de joguinhos e apostas ou, até, pornografia, drogas ilícitas e informação privilegiada – todo mundo virou empreendedor? Com o carro alugado, a moto com a prestação atrasada, o celular parcelado em dez vezes, os empréstimos de um banco cobrindo o cheque especial do outro e o tempo para a família, amigos, lazer, estudos e descanso sempre adiado.
Empreendedores de quê?
“De si mesmos”, dizem alguns desses autoproclamados gurus ou coaches motivacionais que, também fazem parte do emprecariado, perseguem o intangível pote de ouro além do arco-íris de expropriação de si mesmos – isso sim! – de alienação e mercantilização de nossa humanidade, como dita o neoliberalismo.
E, quando não estamos produzindo, estamos consumindo. Instagramando o mundo, codificando experiências e memórias através de dancinhas e trends, transferindo sonhos e expectativas, decepções e angústias para as vitrines de onde nos vigiam e de onde percebemos apenas as realidades que nos convêm.
Pouca gente sabe, por exemplo, que 9 em cada 10 empreendedores brasileiros não tem funcionários, ou seja, desempenham todas as funções de seu “negócio” (FEBRAE, 2022). Dos cerca de 43 milhões de pessoas que compõem o empresariado (ou emprecariado?) nacional, menos de 7% têm rendimentos mensais superiores a R$ 4 mil, enquanto 49% sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês.
De forma similar, cerca de 90% das pessoas físicas que investem na bolsa de valores fecharam os três últimos anos no prejuízo, de acordo com levantamento feito por pesquisadores da FGV ano passado.
Pior ainda: nesse mundo tão interconectado, há mais de 2,5 bilhões de pessoas com mais de 12 anos no mundo sem acesso à internet (ONU, 2022).
No Brasil, o número passa de 30 milhões e é composto principalmente pelas pessoas mais pobres, que com frequência também não têm acesso a eletricidade, água encanada e esgotamento sanitário. Só quem pode produzir e consumir tem direito a sua humanidade?
Até mesmo o dinheiro, sangue simbólico que corre pelas veias a artérias do organismo econômico global, tem perdido sua função original, que é de intermediar as relações estruturantes das sociedades pós-industriais. Quando deixa de ser meio e passa a ser fim, o capital financeiro rompe a coesão do tecido sociocultural que assegura o funcionamento das Instituições e se converte numa espécie de predador parasita, impedindo que se retroalimentem os ciclos de produção-consumo-exploração pelo esgotamento (ou morte) dos recursos (ou seres humanos) que utiliza para se perpetuar, tendendo a extinguir-se.
Estratégias paliativas são frequentemente anunciadas como a salvação para um sistema que depende de crises e instabilidade para se justificar. No ciberespaço, o dinheiro também ganhou versões alternativas, a exemplo de criptomoedas, ativos digitais em blockchains e fortunas imaginárias armazenadas em nuvens virtuais.
Nada disso, nem de longe, conseguiu sequer amenizar problemas estruturais que só crescem, incluindo fome, miséria, genocídios, destruição ambiental e, não menos importante, a infelicidade generalizada que é emblema da pós-modernidade.
Para que serve, afinal, tanta tecnologia? Onde está e quando poderemos usufruir de toda essa liberdade de que tanto falam? O que fazem com tanto poder e tantos recursos os reis, presidentes, influencers e bilionários que controlam o mundo? Quando é que os cientistas irão, finalmente, descobrir a cura pra tristeza? Ou, ao menos, somar esforços para combater os males que afligem a humanidade ao invés de criar novas armas de destruição em massa?
Perguntas assim são complexas e exigentes. Muito mais simples e agradável comprar o smartphone lançado anteontem! Colecionar likes e seguidores nas redes sociais. Mudar o destino do mundo votando no próximo paredão do BBB. Aproveitar o merecido final de semana depois de dias de trabalho duro (sem desgrudar do celular, claro).
Agradecer a Deus, aos patrões e governantes por não vivermos todos numa tenebrosa ditadura do proletariado como o mundo jamais viu.
Luis Felipe Valle é professor universitário, geógrafo e mestre em linguagens, mídia e arte.